Na semana passada, dissertando sobre uma manobra redentora de Miguel Relvas, falei de “um processo que consiste em manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória”. Um leitor atento, Vasco Cabral Barreto, escreveu um comentário online, virando contra mim essas palavras por eu ter omitido uma sórdida história entre o então ministro Relvas e este jornal - o local do crime aonde ele regressou agora en grand seigneur – em que a única vítima foi uma jornalista. Dessa história, acho que sei pouco; mas sei um pouco mais dos limites e contradições com que se confronta quem quer criticar os jornais no interior deles, mesmo que em regime de colaborador externo, que conhece tanto o que se passa nos centros de decisão editorial quanto os leitores. Criticar os jornais quando escrevemos para eles e, por conseguinte, nos conformamos às suas regras, significa correr o risco de ser atingido pelos estilhaços que as nossas pedradas provocam, se chegam ao alvo. Mas a dificuldade em exercer essa crítica é ainda de outra espécie: é muito mais fácil adoptarmos uma posição crítica perante qualquer coisa (a cultura, a política, a ideologia, etc.) do que termos uma consciência crítica da nossa posição no interior dos mecanismos e lógicas que nos envolvem. Nos cálculos sobre o lugar para onde falamos, rasuramos quase sempre o lugar de onde falamos. Há muitas pessoas com um discurso que segue uma determinada tendência, mas que, pelo modo como ocupam o seu lugar e pelos meios de que se servem, contradizem a sua tendência e tornam-se ingenuamente funcionais relativamente ao que criticam. Sem uma forte autoconsciência da posição onde nos instalámos ou nos instalaram, toda a crítica é afectada de nulidade. Um exemplo: se este jornal decidisse que a minha coluna semanal passaria a “contracenar” (segundo um modelo muito difundido) com a do João Miguel Tavares, estaria a desviá-la para uma região que lhe é hostil. Ainda que eu mantivesse o mesmo discurso, acentuava-se a dimensão de entretenimento e criava-se um falso debate entre duas pessoas que não falam a mesma linguagem. Em vez do jogo da oposição, teríamos o diferendo. E não se trata de um ser de Direita, segundo dizem, e outro de Esquerda, presume-se. Se eu quiser criticar os media, verificar que eles estão cheios de profissionais da “opinião”, isto é, de um editorialismo ideológico semelhante ao que Nietzsche chamava “moralina”, asfixiando o ambiente, se quiser mostrar a nefasta invasão dos media pelos políticos-comentaristas que ampliaram uma política Potemkin, servida por um idioma-propaganda que esvazia a linguagem, dificilmente o consigo fazer senão de fora. No interior, o mais certo é sujeitar-me a contaminações ou escorregar na contradição. Mas nem por isso devo deixar de tentar sempre, sabendo que ter uma consciência crítica do lugar de onde falamos e das limitações a que estamos sujeitos é a condição para fugir à doxosofia. Devo esta palavra a Pierre Bourdieu, que baptizou como doxósofos (um vocábulo formado por analogia com filósofos) uma classe específica de intelectuais. São aqueles que devem tudo aos media e às suas paralelas instituições culturais que se arrogam o poder de consagrar “figuras” que eles próprios produzem e fazem prosperar. Ao contrário do antigo intelectual, o doxósofo não traz para o espaço público uma autoridade reconhecida em qualquer campo do saber, da ciência ou das artes: nasce e desenvolve-se na incubadora mediática. No jargon da redacção dos jornais, é a “prata da casa”, uma baixela para todo o serviço a que é preciso sempre puxar o brilho.
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