Numa noite de 2005, algo aconteceu: metade do corpo de Catherine Breillat morreu. Enquanto ela dormia, o seu corpo ficou dividido em dois. Sem a acordar, sem a fazer sofrer, a morte passou como uma pena. Deixou-lhe uma mão esquerda morta, como a mão da sua mãe que saía do túmulo de bronze. É assim, com a descrição do seu AVC, que a cineasta começa Abus de Faiblesse, o livro que escreveu em 2009, depois de cinco meses no hospital em reabilitação (para ser estabilizada a morte da parte esquerda do corpo) e após ter regressado aos filmes, com Une vieille maîtresse (2007). Esse livro foi uma encomenda para pagar contas, disse. Tira o peso da catarse ao objecto — para além de dispensar as veleidades de escritora (“sou cineasta”). Pagar contas porque, durante o processo de reabilitação, Catherine viu na televisão Christophe de Rocancourt, um falsário que já aldrabara meio mundo e uma parte de Hollywood (Mickey Rourke, por exemplo), a gabar os feitos da sua vida, agora que saíra da prisão. Era como um adolescente de 40 anos, que é como ela gosta — para além de preferir os voyous aos apresentadores de televisão que, diz, ganham a vida a fazer moral com a amoralidade dos outros. Em Christophe de Rocancourt, alma de voyou como o Jean Gabin de Touchez pas au Grisbi, “brutalidade de cutelo”, Breillat reconheceu a estrutura dos seus filmes.
Foi como um coup de foudre. Qui-lo para um filme, quis ser proprietária daquele corpo, daquela vulgaridade. Conheceu-o e deve ter querido salvá-lo também. Ele seria o intérprete de Bad Love, filme para o qual Breillat já contactara Naomi Campbell. Setecentos mil euros depois, no dia 20 de Abril de 2009, Breillat, 65 anos, apresentou queixa, junto do organismo nacional francês de combate ao banditismo, contra Christophe de Rocancourt por abus de faiblesse: pelo aproveitamento que ele fez da sua vulnerabilidade — ficara sem dinheiro, sem casa, dependente dos filhos, cumprindo-se como velha senhora indigna e inválida. Sem ponta de auto-comiseração, porque enquanto as coisas aconteciam e os cheques voavam, ela estava mesmo “a ver o filme”. Como se acontecesse a outro.
Em Abus de Faiblesse, o livro, começava então um fascinante processo de autobiografia como relato de desapossamento (logo ela, que ficou sem uma parte do corpo). E agora, acabado de chegar às salas de cinema francesas, há Abus de Faiblesse, o filme. Que é menos uma adaptação do livro do que uma progressão no processo de divisão, de separação. Como uma levitação a partir da sucessão de acontecimentos: uma fantasia, um “conto de fadas” delirando com o masoquismo — com o masoquismo de Maud, assim se chama a protagonista (e não Catherine), e com o ogre chamado Vilko (que é assim que ele se chama, e não Christophe).
Ela é Isabelle Huppert, ele é Kool Shen, rapper. Não querendo correr o risco de fazer um filme sobre si própria, a cineasta fez um filme que é propriamente dela (“Tinha medo que se tornasse um filme sobre mim, e não um filme meu”, disse à revista Les Inrockuptibles — fala também como os filmes, a lucidez grave e solitária confere aço à avidez do romantismo). À medida que os cheques a Rocancourt iam voando, Catherine ia-se cumprindo como heroína dos seus filmes, como aquelas mulheres que são autoras do seu próprio aniquilamento porque são mais fortes quando são as vítimas — há nisso uma transfusão vampírica, Catherine poderá atirar a Christophe que ficou com uma parte dele, aqueles dois anos de vida eram já o livro e são agora o filme e isso ele não poderá roubar (as ameaças de morte que ele lhe fez à beira da rodagem já foram por isso só um esgar, se comparadas com a implacabilidade de Rocancourt na fraude e na ferida, coisas essenciais). Pode considerar-se mesmo que o título Abus de faiblesse falará tanto dos crimes de um escroque como da queda da vítima — é Breillat, sempre a olhar para si própria de fora, que diz que, não sabendo bem o que lhe estava a acontecer, sabia que cumpria o Vivre est une chute horizontale de Jean Cocteau. A forma como Maud é filmada, afundada na cama, cada vez mais manietada na sua vertigem (como numa fábula, e as cores nesses planos vão-se desrealizando), ou, por exemplo, a compensar a debilidade do membro inferior esquerdo com o design especial da bota que calça, configuram rituais de um roleplaying. Há uma feroz auto-ironia neste filme, o que assusta pela coragem da solidão. Há uma sofreguidão que desagua em qualquer coisa que à falta de melhor se pode chamar pacificação, o conhecimento de si — o que assusta também. Tudo isso vive, como rupturas, pedaços contraditórios, no “jogo” de Huppert: teatral no início, na forma como reproduz a deficiência da protagonista (à beira da auto-paródia, aliás), para se dissolver num anonimato sem máscaras, como na sequência final em que Maud, lágrimas a transbordar, (não) explica tudo o que (lhe) aconteceu: C’était moi, c’était pas moi, era ela e não era ela — ou seja, e também, Maud é Catherine e Maud não é Catherine, e o filme é e não é.
Bad Love, com Christophe de Rocancourt e Naomi Campbell, não chegou a ser feito. Contaria a história de um homem vulgar que toma posse de uma estrela — domina-a. Mas ela ultrapassa-o, provocando-o. E ele violenta-a (Catherine Breillat via sangue por todo o lado quando contava o argumento àquele que esteve para ser o seu actor). Ele desculpa-se, ela desilude-se com isso. Despreza-o, e a violência regressa. Quando ela está prestes a partir para uma rodagem com as suas Vuitton, ele não resiste ao cheiro da violência, ela não se esquiva aos golpes. Convida-os. Ela fica em sangue, ele deita-a. “Je n’ai pas mal”, diz ela, doçura final. A estrela morre, o amante é metralhado pelos paparazzi. Este filme está feito, podemos ver nele sangue por todo o lado.