Este humor indefinidamente assim
As Canções de Umor do Reportório Osório são tangos, chulas e boleros a dar voz às ridículas desventuras amorosas de homens de Norte a Sul. Um Mal Nunca Vem Só, dos Stealing Orchestra, são onomatopeias delirantes em fado dissolvido em ácido. País burlesco, este.
Os primeiros são um duo nascido em 2013 no seio da D’Orfeu, muito activa associação de Águeda, e formados por Luís Fernandes, que canta e interpreta, e Sónia Sobral, acordeonista que não canta mas é toda ela interpretação. Os segundos são o universo privado de João Mascarenhas e já contam quase duas décadas de vida (nasceram em 1997), sempre à margem, que a sua música é trabalho de artesão electrónico caseiro pouco passível de exposição em larga escala (apesar da celebração crítica de álbuns como Stereogamy ou The Incredible Shrinking Band).
À partida, nada liga uma banda à outra. Luís Fernandes, um dos fundadores da d’Orfeu, sempre esteve próximo da música popular e tradicional (é a voz dos Toques do Caramulo) e tem desenvolvido trabalho na fusão de música e teatro, a “musicomédia”, como define. João Mascarenhas é uma centrifugadora voraz com a cabeça cheia de cultura pop: pimba e heavy-metal, cartoons e jogos de computador, sci-fi marado e western de Festival da Canção. À partida, nada liga uma banda a outra. Mas ouve-se Canções de Umor e ouve-se Uma Desgraça Nunca Vem Só e eis que, no teatro feito música sobre homens despeitados, amargurados, de um, e na música feita banda-sonora delirante, excessiva, do outro, descobrimos o humor a uni-los - um humor que é um olhar.
Dez personagens, entre o Minho e o Algarve, entre o mundo urbano e o mundo rural, a chorar as pedras da calçada, expostos como não nos expomos habitualmente – em Reportório Osório, os homens já choram e nem precisam de escrever cartas de amor para serem ridículos.
Nove peças musicais, do fado trespassado por digitália ao fado fanfarra, da festa para acordeão e banjo a lounge psicadélico-BD ou a folk dedilhada, etérea (Caribou-Floyd-fado?). Isto: “Rio-me porque és da aldeia e vieste de burro ao baile”, título da primeira canção – nos Stealing Orchestra de Uma Desgraça Nunca Vem Só, o abstracto oferecido pela música tem leitura específica (estamos todos ali dentro, todos provincianos).
Homens sofridos
O Reportório Osório não devia ter acontecido. Havia um 2006 uma série de temas criados pelo compositor Luís Cardoso, homem de percurso ligado às bandas filarmónicas, para um espectáculo da d’Orfeu que nunca chegou a realizar-se. E havia uma maquete daí resultante sobre a qual Luís Fernandes cantarolava enquanto viajava de carro. A cantoria tornou-se mais objectiva e, ele que nunca escrevera letras para canções (trabalha a palavra, mas noutro contexto, nos projectos Muito Riso, Muito Siso, ou Mal Empregrados), apercebe-se de um padrão. Estava a contar “histórias, com um lado burlesco de homens sofridos, com os seus próprios problemas e insatisfações”.
Canções compostas, letras escritas, chegaria a outra peça do pequeno puzzle. Sónia Sobral, muito talentosa acordeonista de Viseu, então com 19 anos, concentraria nas teclas e fole a fanfarra das canções originais. Nascia verdadeiramente o Reportório Osório e as suas histórias do Amândio que está “indefinidamente assim”, do Eugénio escravizado no próprio lar, do Serafim traído e ridiculamente angustiado. Luís Fernandes a cantar, qual mestre de um music-hall muito peculiar (“algumas têm qualquer coisa de chanson francês e de cançonetista da músical ligeira portuguesa dos anos 1940, 1950, 1960), e Sónia Sobral e responder-lhe com o acordeão feito tradição e mistura: há valsas e boleros e chulas e tangos, mas tudo se reúne numa mesma unidade, porque Sónia sabe contornar as regras habilmente.
Em palco, porque o Reportório Osório começou por acontecer em palco (o disco chegou depois), víamos aquele homem encarnando aqueles homens que, “desabafando cruamente perante uma plateia, descobriam-se tão sofridos que já não lhes restava nada, nem o pingo de vergonha necessário para se defenderem”. Os papéis invertem-se. Luís Fernandes, homem já quarentão, “é o ser frágil”, e Sónia Sobral, hoje com 20 anos, é a “presença poderosa”, muito “segura e com uma expressividade que cai que nem uma luva no espectáculo”.
A música, reduzida em elementos (voz e acordeão, ocasionalmente com a presença da Filarmónica 12 de Agosto, dirigida por Luís Cardoso), tem uma expressividade curiosa, anacrónica mas indefinida. Um pouco como os personagens cantados por Luís Fernandes. “A minha vivência é próxima de realidades muito rurais ou muito urbanas e, portanto, consigo identificar estas personagens todas. Consigo ir ao mapa e apontar quem é transmontano, quem é beirão, quem vive no interior ou no litoral”. Aquele que melhor servirá de protótipo para todos nós, aponta Luís Fernandes, é o primeiro a aparecer, o Amândio que “sempre em suspenso” da Marcha da Acha: “Ou por natureza ou porque está em determinada fase da vida, está indefinidamente assim. Está um pouco como o país, que anda indefinidamente assim há cinco séculos”.
Luís Fernandes não se coíbe de referir que é no palco que o Reportório Osório se revela totalmente. A ele regressará dia 15, quando o duo actuar no Festival Bons Sons, em Cem Soldos. Dia 16 estará em Castro d’Aire, no Festival Altitudes e, no Outuno, seguir-se-ão novas datas. As Canções de Umor são para ver em carne e osso. A tragédia do drama, o ridículo burlesco das dores dos Amândios, Aurélios ou Felisbertos, precisam de se expor.
Fados retalhados
Precisamente o contrário dos Stealing Orchestra, que não darão qualquer concerto para apresentar o novo EP. João Mascarenhas cria em casa, ao seu ritmo, editando quando lhe apetece (Deliverance, o último álbum, foi editado em 2011). Entre a composição de música para jogos e o trabalho com a Companhia de Dança do Norte, sedeada em Macedo de Cavaleiros, apareceu-lhe um pedido de Rafael Dionísio, autor ligado à editora Chili Com Carne: o de editar a sua colecção de vocalizações na netlabel You’re Not Stealing Records, fundada por Mascarenhas. “Gostei tanto das vozes que pedi para ele me dar um tempo para as trabalhar”.
Reenquadrou aquelas vocalizações feita de onomatopeias, guinchos, gritos e silvos, num novo universo sónico, excessivo, delirante, qual cartoon-dada-agit-prop. Música maioritariamente instrumental, como é marca dos Stealing Orchestra, mas com coisas a dizer. Uma desgraça Nunca Vem Só, o EP agora editado, é composto por fados retalhados (e ouvem-se vozes de fadistas, agudas e aceleradas, cómicas) e electrónica sabotando febrilmente a ideia de canção. Os títulos, por sua vez, dão foco à narrativa que a música ilustra. Atente-se: “Rio-me porque és da aldeia e vieste de burro ao baile”; “Usa para mim aquela cueca com renda de bilros”; “A tua choradeira é meio salário em lenços”. “No cinema, a banda-sonora encaminha-te num determinado sentido. [Nos Stealing Orchestra], o título das canções serve o mesmo propósito”.
O final do EP chega com um sample de um célebre discurso na Assembleia da República, em que a sua presidente, Assunção Esteves, cita Simone de Beauvoir a despropósito quando confrontada com o ruído de cidadãos manifestando-se nas galerias. Ouve-se música celestial danificada, com os samples distorcidos a criar uma atmosfera surreal. Ouve-se a voz que cita a ensaísta francesa: “Não devemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes”. Segue-se o “senhor secretário de Estado” que toma a palavra. Título da peça, sem papas na língua: “Gente da minha terra que me mete um nojo do caralho”.
João Mascarenhas, nascido em Macedo de Cavaleiros, adolescente em Famalicão, hoje habitante do Porto, criador da Stealing Orchestra: “Somos [os portugueses] fatalistas e ao mesmo tempo resignados. Gozamos com uns políticos e pronto. Lá vamos andando com a cabeça entre as orelhas, como dizia o Sérgio Godinho. [O álbum] acaba por ter também um pouco a ver com isso. Tem esse sarcasmo. E não sou eu, de fora, olhar o povo, porque eu também sou isto”. Stealing Orchestra, 2014: “Uma Desgraça Nunca Vem Só”. Uma desgraça que soa muito bem. Há crueldade no escárnio e no caleidoscópio sonoro construído sobre as guitarras e as vozes do fado que, como habitual no trabalho da banda, surgem recontextualizadas em música que, apesar do carácter experimental, tem um fio condutor e um estranho apelo pop.
Se a realidade ultrapassa a ficção, delirar é preciso. E a Stealing Orchestra, com a voz alucinada de Rafael Dionísio, diabrete num teatro de costumes sem guião, delira com muita precisão. Ela e o retro-futurismo, fado velho e electrónica nova, da música, são misteriosamente bom par para os homens ridículos dançando chorosos à volta do acordeão dos Reportório Osório. País de umor, este.