Esta música não é anti-sionista, é contra a globalização
Os Oy Division trazem na quinta-feira à Culturgest, Lisboa, a música klezmer que, durante décadas, foi esquecida em Israel.
Em 1953, o autor judeu Ka-tzetnik 135633 publicou em Israel um romance intitulado House of Dolls, em que descrevia a exploração sexual de grupos de mulheres judias (presas em campos de concentração) por parte de soldados nazis. Estes grupos de mulheres alegadamente seriam designados como “joy divisions” e foi nesse relato que a seminal banda pós-punk inglesa liderada por Ian Curtis se inspirou para o seu nome de baptismo. Tudo assenta num equívoco, argumenta Assaf Talmudi, uma vez que hoje muitos acreditam que a base diarística da obra de Ka-tzetnik é apenas um produto ficcional da sua imaginação.
Assaf Talmudi é um dos membros dos Oy Division, banda israelita dedicada à música klezmer que na quinta-feira actua na Culturgest, em Lisboa. “Oy” é um vocábulo iídiche que segundo o acordeonista designa um sincretismo emocional entre exaltação e tristeza. Mas é também uma forma de pôr em causa essa “verdade” criada pelo livro House of Dolls e difundida em larga escala graças à popularidade dos Joy Division. Foi também a vontade de questionar o apagamento das culturas da diáspora judaica decretado aquando da fundação do estado Israel que levou o quarteto a formar-se em 2005, em Telavive, recuperando a música criada pelos judeus da Europa de Leste e que, na sua geração, estava totalmente esquecida.
Os Oy Division foram, por isso, os primeiros de uma geração convivente com a massificação da música popular anglo-saxónica a resgatar o klezmer de uma previsível extinção em Israel – quando, por outro lado, se mantém bastante vivo nos circuitos nova-iorquino e europeu. “O papel da cena musical israelita foi durante muito tempo anti-diáspora”, explica Talmudi ao PÚBLICO. “Os judeus que vinham de todo o mundo eram encorajados a rejeitar a sua cultura e a inventar algo novo.” E como forma de união dessas diferentes origens vingou “a ideia, nos anos 50, de construir uma nova cultura hebraica unificada que tomou o lugar de um passado judeu fragmentado.”
A música klezmer, como símbolo de um “passado europeu dos judeus que terminou muito mal”, foi posta de lado, por se acreditar que a sua prática mantinha as feridas do Holocausto em carne viva. Daí que os Oy Division, executantes com espírito punk desta música festiva que acompanha amiúde casamentos e festas religiosas, tenham antecipado reacções hostis ao caminho escolhido. “De início, pensámos que geraria uma polémica interessante e que talvez enfurecesse algumas pessoas, mas isso não aconteceu”, recorda Talmudi. “Da maneira como entendemos a música ela não é anti-sionista, mas levanta questões sobre o sionismo e a unificação cultural, e por isso achámos que nos encarariam como muito esquerdistas. Não tivemos esse efeito, descobrimos, aliás, que as pessoas tinham saudade desta música.”
O bom acolhimento desta nova vida do klezmer, defende o acordeonista, prende-se também com um movimento comum de resistência a um mundo global formatado pelo padrão ocidental. Esse regresso às culturas primitivas diz-nos também que “as pessoas não querem cortar totalmente com o passado”. Agora, aquilo que falta segundo os Oy Division, é que esta postura contra o “pensamento monocromático” possa influenciar a política e a economia. Que o passado possa, enfim, ter uma palavra a dizer sobre o futuro.