Entreter (ou morrer a tentar)

Jan Martens é claro quanto ao que quer dos oito bailarinos que põe a saltar durante os 70 minutos de The Dog Days Are Over (7.200 saltos cada um, e tudo por um aplauso). Mas nós, os espectadores, o que é que realmente queremos deste, ou de qualquer outro, espectáculo?

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O que reluz neste espectáculo é o desejo que o público tem de ser entretido, mesmo que às custas do suor e do desespero de quem tem à frente PIET GOETHAL

Jan Martens tinha programado um futuro que um certo espectáculo de Jan Fabre visto sob a influência de uns muito impressionáveis 16 anos, As long as the world needs a warrior’s soul, o fez pôr (aparentemente sem grande desgosto) na lista das coisas que não vão acontecer. Cenas do coming of age na Flandres de finais do século XX – o equivalente, no universo da dança contemporânea, a cair no caldeirão da poção mágica, como Obélix – que o coreógrafo belga (Beveren, 1984) nos conta ao telefone pouco depois das 8h da manhã. Banda-sonora dos Rage Against the Machine, bateria em cima do palco, alguma – muita – nudez embrulhada em celofane, ketchup, chocolate, manteiga, todo o som e toda a fúria que uma juventude em marcha podia desejar, à distância de segurança que separa a plateia do palco – imaginamos como o adolescente Jan Martens se terá “entretido” nessa noite, embora “entretido” não seja a palavra que ele usa para nos descrever o embate: “Lembro-me perfeitamente desse trabalho de casa que nos marcaram na escola: tínhamos de ver um espectáculo sem texto. Era tudo muito físico, muito sensual, muito impressionante. Abalou imenso a minha puberdade.”

The Dog Days Are Over, a esgotante peça para oito bailarinos (7.200 saltos cada um, ou seja 57.600 saltos no total) com que Jan Martens faz esta sexta-feira a sua entrada em Portugal, via Teatro Municipal Rivoli, ainda é um efeito desse abalo. Não exactamente porque Jan Fabre continue a estar lá em cima, tipo monstro sagrado, na sua política de autores, mas porque parte da entrega (também podíamos dizer: do sacrifício) e parte da violência desse programa de hiper-investimento físico pesa visivelmente, ainda que noutros termos, nos ombros dos bailarinos que faz saltar sem dó nem piedade durante 70 minutos. Para os questionar a eles, sim, e ao irremediável exibicionismo do culto que prestam ao corpo, sempre impecável nas suas malhas American Apparel, mas também a nós, que no fim batemos muitas palmas e a seguir esquecemos tudo muito rapidamente: até onde é que estamos dispostos a ir, que sacrifícios humanos estamos dispostos a exigir, para passar um bom serão numa sala de espectáculos e dar a despesa do bilhete por bem empregue?

Essa pergunta, talvez a mais difícil, só apareceu durante o processo. Em 2012, quando Jan Martens começou a trabalhar em The Dog Days Are Over – então uma curta peça de 15 minutos para seis bailarinos que se chamou Pretty Perfect – por encomenda de duas instituições de Roterdão (o centro de pesquisa coreográfica Dansateliers e a companhia Conny Janssen Danst), aquilo que tinha na cabeça era a icónica série de retratos a preto-e-branco que o fotógrafo Philippe Halsman inventou como método para desarmar todas as estrelas que na América dos anos 50 e 60 pôs na capa da revista Life. Todos saltaram para ele, de Grace Kelly a Aldous Huxley, de Jacques Tati a André Breton, dos Duques de Windsor a Jean Seberg, de Richard Nixon a Dean Martin – alguns, como Marilyn Monroe, até saltaram de mão dada com ele. Jan Martens viu as imagens mas sobretudo leu os argumentos de bastidores: “Quando pedes a alguém para saltar, a sua atenção concentra-se sobretudo no acto de saltar e a máscara cai, deixando a verdadeira pessoa aparecer”, explicou Halsman em 1958 (a propósito: grande retrospectiva no Jeu de Paume, em Paris, até 21 de Janeiro). Mais ou menos o que acontece aos bailarinos da peça aí pelo minuto 36, quando o fôlego começa a falhar, o suor escorre sem parar pelo pescoço abaixo e as malhas American Apparel já não estão assim tão impecáveis: aí quando os oito estão tão exaustos que já só conseguem pensar em fazer o que têm a fazer até ao fim, e portanto são obrigados a sair da pose, a deixar de representar. Dar conta das duas coisas ao mesmo tempo, acredita Jan Martens, não é possível. Pelo menos quando se tem de saltar duas vezes por segundo durante mais de uma hora.

Portanto: no início havia essa pergunta sobre o que faz correr os bailarinos. “Saltar foi a minha maneira de lhes tirar a máscara, de fazer o meu retrato a preto-e-branco desta classe de pessoas obsessivas que se atiram para o palco e se sacrificam em nome de um certo perfeccionismo – ou de um certo exibicionismo”, diz o coreógrafo ao Ípsilon.

Era o que ele “queria que reluzisse” neste espectáculo, uma personalidade colectiva, depois de anos a fazer retratos à escala de uma pessoa (os solos La Bête ou Bis, que mais tarde juntou num double-bill, Dialogue), duas no máximo (o díptico Sweat Baby Sweat A small guide on how to treat your lifetime companion e Victor).

E a avaliar pela quantidade de suor que estes oito bailarinos deixam no palco, reluziu mesmo.

Os bailarinos também se abatem
O que também reluz neste espectáculo, tendo em conta a quantidade de espectadores que já o viram até ao fim sem sinais exteriores de remorsos, é o desejo que o público tem de ser entretido, mesmo que às custas do suor e do desespero de quem tem à frente. Foi a tal questão que apareceu depois, quando Jan Martens já tinha decidido transformar Pretty Perfect numa “peça duracional” que levasse ao limite os bailarinos e, num certo sentido, a própria ideia de espectáculo enquanto bem de consumo: “Fiz esta peça num contexto em que se falava muito de cortes nos orçamentos da cultura e em que apareceram muitas vozes a defender que os subsídios devem ser proporcionais ao número de bilhetes vendidos. Olhei à minha volta e vi que muitos artistas estavam já a trabalhar assim: a fazer tudo mais comercial, mais acessível a ‘uma audiência mais vasta’. E ouvi de muitos programadores que o meu trabalho era demasiado lento, demasiado hermético.”

Quis então fazer “uma peça que fosse dinâmica desde o início” (talvez demasiado dinâmica, no sentido de imprópria para cardíacos). Trabalho sujo, esse, do artista que tem de entreter (para não morrer a tentar): “Dispus-me a tentar perceber o que é que realmente entendemos por entretenimento – essa coisa de gostarmos de ver os outros em esforço, em dificuldade, em sofrimento, que se tornou esmagadora com a proliferação dos reality-shows. A verdade é que desde os tempos dos romanos ver gente a morrer na arena é uma festa."

São os seus alibis para este trabalho sujo, o do artista que para entreter (e não morrer a tentar) põe oito bailarinos no limiar da “exaustão física e mental” – oito bailarinos que literalmente dão o corpo pelo espectáculo, saltando sem parar ao mesmo tempo que executam sincronizadamente complexas figuras geométricas, e que, a cada nova apresentação, “lutam para chegar ao fim” mais ou menos inteiros. Nem sempre chegam: “Quando fiz audições para esta peça [viu 400 pessoas], deixei bem claro que não seria para toda a gente. Todos sabiam ao que vinham, mas já aconteceu vez um bailarino não aguentar os 70 minutos por não estar num bom dia. Temos uma série de regras, e uma delas é que se o corpo mandar parar paras mesmo – mas ficas no palco, porque o grupo precisa da tua energia para continuar.” É importante, diz Jan Martens, que os oito comecem e acabem juntos: saltar durante 70 minutos “não é coisa que se faça sozinho”. Mas também é importante que, para retomar o espírito das imagens dos anos 50 em que esta peça se inspirou, a máscara do intérprete perfeito caia para que se veja a pessoa real, provavelmente esgotada, que está atrás dela. Nisso, não há dois bailarinos iguais: “Queria um grupo em que todos fizessem a mesma coisa, mas não um grupo em que todos tivessem o mesmo corpo, a mesma stamina, o mesmo passado na dança. E é incrível como as diferenças acabam por encontrar espaço numa grelha tão estruturada e limitativa. Até porque todos se transformam a uma velocidade diferente, e num grau diferente: alguns estão tão em forma que só começam a ceder nos últimos minutos. Cada um teve de descobrir como gerir o seu clímax, o seu esforço, os seus limites.”

Observá-los à medida que se transformam, à medida que ganham umas qualidades e perdem outras, é o que torna The Dog Days Are Over tão irrecusável. É uma maratona, e queremos ver como acaba: somos espectadores, é o nosso trabalho. Talvez também seja um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer, admite Jan Martens. Não quer lavar as suas mãos de um espectáculo que por experiência própria sabe que é tão cruel (substituiu pessoalmente alguns dos bailarinos) como viciante, mas... “No limite, de quem é a responsabilidade disto? É minha, que coreografei, do programador, que pôs o espectáculo num palco, da imprensa, que divulgou, ou do espectador, que pagou para ver?”

Sem cortar muito a pica de quem pagou ou vai pagar para ir ao Rivoli ver se os bailarinos também se abatem, podemos dizer como acaba. Acaba sempre da mesma maneira. Com oito bailarinos extenuados, e doidos não por um banho, nem por três litros de água, mas por um aplauso: “Em nenhum outro espectáculo vi os bailarinos tão gratos por um aplauso: é como se esse fosse o reconhecimento oficial de que aquele cansaço é real, de que há ali verdade no lugar onde só costuma haver teatro. É mesmo um momento de grande emoção para eles.”

Nem aí, garante Jan Martens, os bailarinos de The Dog Days Are Over estarão a representar. 

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