É do passado que vêm alguns dos mais excitantes sons do presente

Multiplicam-se as editoras que vasculham em eras e latitudes longínquas à procura do diferente.

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Hailu Mergia A carreira do organista e acordeonista etíope renasceu no século XXI . Continua a guiar um táxi nas ruas de Washington. Mas em Outubro, vai dar concertos na Europa
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Jean-Claude Vannier A reedição em 2005 de L’ Enfant Assasin des Mouches (1972), do francês Jean-Claude Vannier, colosso funk orquestral, foi um “tiro no escuro”
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Ata Kak Quando ouviu Moma Yendodo, canção de Ata Kak sacada a uma cassete comprada no Gana., alguém escreveu: “Talvez nunca tenhas ouvido algo como isto noutros sítios”. Ata Kak anima agora hipsters em palcos da Polónia a Londres
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Rodriguez O músico de Detroit fez dois discos em 1970 e 1971 e dedicou-se a trabalhos como demolir prédios, a fugir à pobreza, sem saber que se tornara um fenómeno na África do Sul. À Procura de Sugar Man (2012), documentário de Malik Bendjelloul sobre os esforços de dois fãs sul-africanos para encontrar Rodriguez, deu o empurrão às reedições

Neste mundo, um produtor do Gana faz música que está tão perto da house de Chicago como da música tradicional do seu país (DJ Katapila, Trotro, ed. Awesome Tapes From Africa); um grupo de raparigas americanas, aparentemente inaptas para o ofício, ultrapassa os ditames do rock (The Shaggs, Philosophy of the World, ed. Light in the Attic); um aliado de Fela Kuti junta disco, rap, funk africano e juju (Odion Iruoje, Down To Earth, ed. Soundway); venezuelanos fitam o futuro (a compilação da Soul Jazz Cosmic Visions Of a Latin American Earth: Venezuelan Experimental Rock In The 1970s).

Quantos mundos cabem neste mundo? Todos quanto o passado quiser – e o passado, poço aparentemente sem fim, não dá sinais de querer deixar de fornecer alguns dos mais excitantes sons do presente. Todos estes discos foram reeditados este ano pela mão de editoras que fazem das reedições a sua principal missão.

“Estou fascinado com o passado. Há algo de incrivelmente genuíno nestes discos. E há também o mistério. No mundo de hoje, é difícil criar mistério à volta da música. A internet mudou tudo”, diz ao Ípsilon Matt Sullivan, fundador da norte-americana Light in the Attic, que ajudou a destapar o véu que cobria Rodriguez e já lançou duas centenas de discos velhos, dos pioneiros do hip-hop Last Poets à música folk Karen Dalton.

“Adoramos estes discos, adoramos o suficiente para querer editá-los e partilhá-los”, explica Doug Shipton, da inglesa Finders Keepers. Dizem que querem libertar a música de qualquer país ou era – e, por isso, tanto podem lançar música de dança paquistanesa como experiências electrónicas francesas. No processo, deram um novo contexto a músicas desconhecidos à maioria dos ouvidos e encontraram artistas que, acreditam, são mais desafiantes do que a generalidade dos músicos contemporâneos.

Na sua Awesome Tapes From Africa, Brian Shimkovitz consegue um efeito idêntico. Graças ao seu trabalho de detective, reactivou carreiras e destruiu ideias feitas sobre a música africana. “Fico superinspirado quando há um disco ou um artista que não aparece no Google.”

Investigação “permanente”

A Light in the Attic, a Finders Keepers e a Awesome Tapes From Africa estão entre as editoras de reedições mais revelantes surgidas nos últimos anos. Muitas, como estas três, são independentes, mas as multinacionais há muito que já detectaram o filão, enchendo as lojas com edições luxuosas de discos antigos. Em 2015, as vendas de reedições ultrapassaram as de novos álbuns nos Estados Unidos, revelou a consultora Nielsen.

Nas grandes editoras, a tendência passa, em boa parte dos casos, por apresentar o mesmo produto com livretos mais grossos, com canções extra (ou apresentadas em versões alternativas) ou simplesmente em vinil para responder à subida de procura deste formato.

A Finders Keepers não segue essas práticas. “Decidimos fazer a Finders Keepers como um passatempo para editar as coisas de que gostávamos”, conta Doug Shipton, coleccionador para quem há pouca música contemporânea excitante.

O primeiro álbum da Finders Keepers, L'Enfant Assasin des Mouches (1972), do francês Jean-Claude Vannier, que fez arranjos para Serge Gainsbourg, era uma relíquia para coleccionadores. Em 2005, a reedição deste colosso funk orquestral, que seria transposto para palco no ano seguinte com a ajuda de Jarvis Cocker e outras estrelas, foi um “tiro no escuro” e um “salto de fé”, tal como o seu sucessor, Le Monde Fabuleux des Yamasuki (1971), disco feito por um duo francês a imaginar o Japão, os Yamasuki. “Nunca acreditamos em discos seguros. Nunca olhamos para um disco e dizemos: ‘Vai vender isto ou aquilo’.”

É um trabalho de investigação “permanente”. Para conhecer melhor a música pop húngara, almoçaram com Zalatnay Sarolta, estrela de outros tempos. “O conhecimento que ela nos passou abriu um mundo inteiramente novo de músicos e discos”, revela. “Estive na Turquia há um mês para conhecer um artista chamado Gokcen Kaynatan, que só lançou quatro singles. Ele tem um arquivo de material nunca lançado absolutamente incrível, experimentações de estúdio… Estamos a preparar um pacote para apresentar isto ao mundo.”

Com concorrência acrescida, a Finders Keepers interessa-se cada vez mais por lançar música nunca antes editada (do pós-punk a Bollywood e outros centros de produção cinematográfica, da Turquia à música concreta). “Há mais botas no terreno, mais pessoas a cobrir o espectro de géneros, mais diggers, mais coleccionadores de discos e mais editoras. Tendemos a especializar-nos um pouco mais e é mais excitante andar aquele quilómetro extra para descobrir música nunca lançada, para encontrar artistas que nunca conseguiram sequer lançar em vinil, para arquivar estes velhos discos e trazê-los para debaixo dos holofotes. Antes, o processo era: encontrar um disco, obter os direitos e editar. Agora, há muito mais a acontecer.”

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A Awesome Awesome Tapes From Africa, a Light in the Attic, e a Finders Keepers estão entre as editoras de reedições mais revelantes surgidas nos últimos anos

O mundo inteiro por descobrir

O norte-americano Brian Shimkovitz está habituado a fazer vários quilómetros extra. Foi em 2006, depois de uma estadia no Gana, no âmbito de um projecto de etnomusicologia, que montou um blogue onde colocou em mp3 uma infinidade de cassetes de música africana. O passatempo de Shimkovitz, hoje dono de mais de quatro mil cassetes, tornou-se uma sensação numa internet cada vez mais interessada por música não convencional (para os ouvidos ocidentais, claro está). Em 2011, o blogue Awesome Tapes From Africa tornou-se também uma editora.

A primeira publicação do blogue destacava Moma Yendodo, canção de Ata Kak sacada a uma cassete comprada no Gana. “Talvez nunca tenhas ouvido algo como isto noutros sítios”, escreveu Shimkovitz sobre aquela música entre a house, o hip-hop e o marciano.

A Awesome Tapes reeditaria essa cassete e Ata Kak, que tinha deixado a música, anima agora hipsters em palcos da Polónia a Londres. Shimkovitz demorou oito anos a encontrá-lo para o convidar a reeditar a cassete. “Ninguém sabia quem ele era. Não era famoso no Gana e Ata Kak não é o seu nome civil. Toda a gente com quem eu falei disse que nunca tinha ouvido falar dele. E gravou o disco em Toronto, o que o tornava ainda mais anónimo. Acabei por encontrar o filho dele em Toronto”, conta.

Foi muito mais fácil encontrar Hailu Mergia. O telefone do organista e acordeonista etíope, que, noutros tempos, fizera carreira nos hotéis de Adis Abeba, onde apresentava jazz de sabor local, estava num site que Mergia mantinha. “Ele ficou muito surpreendido. Foi muito amigável e muito aberto a isto porque nunca teve oportunidade de fazer nada com a cassete que lançou, nunca ganhou dinheiro com ela. Pensou: ‘Que diabo, mais vale tentar!’. Não faço promessas, mas quando o disco saiu ele viu que as pessoas estavam contentes. E está a surfar a onda”, diz. Mergia continua a guiar um táxi nas ruas de Washington. “Para ele é um bom emprego estável quando não está a fazer digressões. Mas ele está sempre a tocar. Em Outubro, vai dar concertos na Europa.”

A Awesome Tapes já lançou três discos de Hailu Mergia. O último, Wede Harer Guzo, gravado em 1978, foi reeditado em Junho. A carreira de Mergia renasceu no século XXI e, em breve, deverá passar por música original. “Só o queremos fazer da forma certa.”

Agir da forma “certa” é uma preocupação para Shimkovitz, formado em etnomusicologia. “A world music era uma lente ocidental”, ele quer ser diferente: reedita álbuns sem mexer na sequência de canções e com a arte visual original; não faz compilações, nem tenta usar etiquetas ocidentais – como “psicadelismo” – para classificar música feita com outras intenções.

Doug Shipton, da Finders Keepers, assume as limitações deste jogo. "Não fazemos segredo do facto de isto serem dois brancos, de 30-40 anos, ingleses, a tentar apresentar a cultura tamil ou paquistanesa a uma audiência parecida connosco”, admite. “Tentamos tirar uma fotografia o mais precisa, do nosso ponto de vista. Se fazemos uma compilação paquistanesa, não estamos a apontar a uma audiência paquistanesa. Se um paquistanês pegasse nessa compilação provavelmente não perceberia porque fizemos o que fizemos. A nossa abordagem parte de um ponto de vista musical. Há um som e um gosto que tentamos ter nos discos. A história da cultura e da música são apresentados como contexto.”

Doug sabe que “uma canção de amor paquistanesa” pode “pôr os putos a dançar nas discotecas da Europa”, mesmo que ninguém entenda o que está a ser cantado; que um “disco pop tailandês” é um “disco pop” e que não deve levar com o rótulo “world music”. Saberá, arriscamos, que a música de Ilaiyaraaja – rei musical em Kollywood, a indústria cinematográfica de Tamil Nadu, Índia, autor de uma mistura de funk, electro e classicismos indianos – vai ser ouvida no Ocidente como uma trip eufórica (documentada na compilação Ilectro, 2013).

Este interesse pelo diferente gera algumas incompreensões. A Finders Keepers procurou durante algum tempo a turca Selda. Queria reeditar o seu disco de 1976, onde cabem protesto, electrónica bizarra, folk, funk. “Samplado” por Mos Def e Dr. Dre, Selda é objecto de culto de coleccionadores. Depois de enviarem faxes para a Turquia e não obterem resposta, os responsáveis pela Finders Keepers chegaram a pensar que teria morrido. Num acaso, numa noite em Manchester, encontraram a filha de uma amiga de Selda.

O encontro com a cantora aconteceu na Turquia. “Quando chegámos à casa dela para a conhecer, acho que ela mostrou ter dificuldades em perceber por que razão estes gajos do Reino Unidos estavam particularmente interessados no material dela dos sessentas e dos setentas. Ela estava muito mais interessada em que editássemos discos novos dela. É difícil, quando começas uma relação com estas pessoas, explicar que tipo de som procuramos, a quem queremos chegar com estes discos.”

Fazer justiça

Não foi preciso ir ao Gana ou à Turquia para a Light in the Attic encontrar delícias desconhecidas no passado.

Em 1983, um tal de Lewis, canadiano que ninguém conhecia, gravou um disco por conta própria que se tornou um prazer de uma minoria – coleccionadores e bloggers encantados com aquele mundo de baladas etéreas e tristes esculpidas a sintetizador, piano e voz. A Light in the Attic reeditou L’Amour sem conseguir chegar à fala com Lewis – os royalties ficaram à sua espera. Mais tarde, acabariam por encontrá-lo, mas Lewis – que, na verdade, se chama Randall Wulff (será?) – está pouco interessado em cavalgar o sucesso daquela reedição.

A segunda vida que Lewis não quis, Rodriguez abraçou. O músico de Detroit fez dois discos em 1970 e 1971, mas poucos lhe prestaram atenção nos Estados Unidos. Dedicou-se a trabalhos como demolir prédios, a fugir à pobreza, sem saber que se tornara um fenómeno na África do Sul. À Procura de Sugar Man (2012), documentário de Malik Bendjelloul sobre os esforços de dois fãs sul-africanos para encontrar Rodriguez, deu o empurrão às reedições que a Light in the Attic já tinha feito dos seus dois álbuns de estúdio. “Tenho sorte em ter tido esta segunda oportunidade. É muito real e totalmente inesperado”, diria o músico, hoje com 74 anos e uma preenchida agenda de concertos.

O negócio das reedições é também a aplicação da justiça, mesmo que com décadas de atraso. Atente-se na história dos irmãos Donnie e Joe Emerson, que lançaram Dreamin’ Wild em 1979, um disco gravado num apetrechado e caríssimo estúdio construído pela família (um investimento irresponsável, em termos meramente financeiros). O álbum foi um fracasso e os adolescentes Emerson não voltariam a gravar. Só que Ariel Pink fez uma versão de Baby, uma impecável balada de soul branca, a Light in the Attic descobriu o álbum e, de repente, os já mais do que adultos Donnie e Joe vêem o seu disquinho tornar-se um tesouro para rapaziada indie.

“Tiveram uma experiência muito negativa na indústria da música. Trinta anos depois, aparecemos nós, excitados com aquilo. Demora muito tempo até que confiem em nós. É muito compreensível”, conta Matt Sullivan. Em 2014, os Emerson lançaram Still Dreamin' Wild: The Lost Recordings 1979-81.

Precisamos de esquecer?

Estamos viciados no passado? O jornalista e crítico musical Simon Reynolds acredita que sim e fez um livro sobre isso, Retromania: Pop Culture's Addiction to Its Own Past (2011). Lá escreve que a cultura pop parece comer-se a si mesma numa espiral de revivalismos que mascara a falta de novos paradigmas – como o punk, a música electrónica de dança e mesmo o grunge foram no passado. Diz que editoras como estas levantam “perguntas difíceis sobre o que fazer com a herança cultural: até que ponto é possível ou desejável preservar e lembrar tudo. Talvez precisemos de esquecer. Talvez esquecer seja tão essencial para uma cultura como é existencialmente e emocionalmente necessário para os indivíduos.”

Lemos esta frase a Matt Sullivan e ele torce no nariz: “Há coisas lindas no passado que não quero esquecer”. “Há algo de excitante na descoberta do passado, nas antiguidades, em coisas velhas empoeiradas”, acredita.

“Se vires o que existe hoje de novidades nos tops e nas lojas de discos, constatarás que não há muita coisa, mas se olhares para os últimos 50 ou 60 anos de música gravada, em termos mundiais, há tantas coisas para descobrir”, afirma Doug Shipton da Finders Keepers.

Brian Shimkovitz admite que haja muitos ouvintes interessados nas suas cassetes antigas africanas porque “talvez estejam fartos de ouvir sempre a mesma coisa”. Mas relativiza: continua a ser feita “música brilhante”. Porque há, então, tantas editoras dedicadas ao passado? “É tudo parte de uma tendência geral de as pessoas terem acesso a tudo em qualquer momento.”

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