E depois do fim, a vida e Andrei Konchalovsky
O realizador russo faz o objecto mais contemporâneo da competição, a sua “ficção do real”. À sua maneira, individualista e aristocrática.
Jornalistas e críticos apanharam aviões de Veneza para Toronto, em direcção às entrevistas, deixando as últimas sessões no Lido entregues aos primeiros sinais do Outono. Ninguém apostaria no último filme em concurso: parecia chegar depois do fim. Inclusive depois do final de uma obra: a última vez que o russo Konchalovsky esteve em Veneza foi há 12 anos, com House of Fools, e já nessa altura o colaborador de Tarkovsky há muito que parecia ter-se perdido entre a Rússia e os EUA - para onde foi trabalhar nos anos 90 chegando a namorar o cinema de acção com Stallone -, entre as séries para a TV e um Quebra-Nozes em 3D.
Mas é verdade: no final do concurso da 71ª edição de Veneza, um filme depois do fim: The Postman’s White Nights. Aplausos com desejo de Leão de Ouro. Um filme depois do fim da URSS, depois do fim do “socialismo romântico”, um filme que se faz com o que restou das epopeias, como Siberiade (1979), do próprio Konchalovsky, e que se ergue dessas cinzas com um lirismo e um sorriso triste arrebatadores, que evocam Boris Barnet ou Aleksandr Medvedkin. Depois do fim vem a vida.
São as histórias de uma aldeia numa região remota da Rússia, aldeia de gente sem representação oficial (diz o realizador que o “camponês” já não existe para o estado russo). São as moscas, os cães, os gatos (um que aparece e desaparece), o álcool, são mulheres sozinhas que se masturbam. A História tornou-os irrelevantes, mas a História ali parece irrelevante - há um foguetão a ser lançado em fundo, ninguém repara. Um carteiro faz a ligação deste mundo ao resto do mundo, mas por pouco tempo, a internet já chegou àqueles lagos.
Konchalovsky chegou a essa aldeia disposto a fazer um filme para si. Sem se preocupar se alguém alguma vez o iria ver. Não tinha nada a provar, diz. Estava numa situação de “total liberdade” em termos de dinheiro, de intenções. E em termos de casting: os seus actores seriam “as pessoas verdadeiras” com quem entrou em contacto e de que fez “verdadeiros actores sem elas saberem que o eram, porque continuaram a viver a sua vida.” “Foi de tal forma que não sei se conseguirei alguma vez trabalhar com actores. Este é o filme em que encontrei a minha total liberdade.”
À sua maneira, individualista, aristocrática, faz o objecto mais contemporâneo da competição, a sua “ficção do real”. Termo que não lhe interessa. Não lhe interessa explicar o que acontece para se chegar a esta superação do documentário e da ficção. “O que me interessava era encontrar uma tipologia humana interessante, ver essas pessoas viver o seu dia-a-dia e filmá-los.” The Postman’s White Nights é um filme de uma dignidade de olhar clássica, exemplar, e obviamente orgulhoso da sua raridade.
Já em ambiente de fim de festa – ainda assim se pode fazer ouvir a pateada a Good Kill (concurso), de Andrew Niccol, filme que parece ter sido telecomandado, e não realizado, sobre os problemas de consciência de Ethan Hawke que envia veículos aéreos não pilotados sobre talibans a partir do conforto da sua cabine em Las Vegas - o filme de Konchalovsky não chegou a tempo de contar para as previsões quanto ao palmarés, a ser anunciado sábado. Os italianos olham sobretudo para si próprios e satisfazem-se por não ter havido assobios à sua selecção nacional em concurso, renovando esperanças no Il Giovane Favoloso de Mario Martone para os prémios.
O documentário The Look of Silence, de Joshua Oppenheimer, é o filme considerado com o perfil de Leão de Ouro, que estaria de acordo com um certo tom de desalinhamento deste júri: o compositor Aleander Desplat a presidir um grupo onde estão os actores Joan Chen e Tim Roth, a figurinista Sandy Powell, a romancista Jhumpa Lahiri, e os realizadores Philip Groning, Jessica Hausner, Elia Suleiman e Carlo Verdone. Mas estes senhores terão de ter visto The Postman’s White Nights.