Franco-atirador
Estou abrigado aqui e longe da vista. Estou abrigado aqui em cima
na torre sineira de Nossa Senhora da Vingança: aqui é o meu lugar,
bem provido e com tudo em ordem. Esta torre foi erguida no ano de
tal e tal, o ano do corvo, ano da nossa desgraça.
Estou abrigado aqui em cima à sombra da cruz,
com abafos para os ouvidos, tenho a minha manta e um colchão de palha,
ajoelhado, mas olho para baixo, como um homem a rezar.
Uma mulher atravessa a praça levando água.
Corre lenta, corre para não verter. Depois uma criança, à vista
desarmada, segue numa diagonal e corre como uma lebre
numa esquiva. Estou aqui ao abrigo, certinho, com uma salsicha e uma cerveja,
um fogareiro para me deixar os dedos livres. Passam os dias.
Estou perfeitamente aqui neste aconchego, a minha toca;
tenho onde pousar a cabeça, lugar onde mijar
e, como contraditório cómico, as aves dos ares.
Com um olho sobre a mira, o mundo fica por perto,
particular: este avô que abraça uma sombra, cabelo a cabelo
na cabeça, olhos orvalhados, no bolso a moeda
de antes da guerra, presa a uma corrente, o tecer do casaco. Além,
junto ao meu amigo, o Homem da Marlboro, é onde
me sentava a beber um café de manhã: o café do Arno,
uma máquina de flíperes, a jukebox, a rapariga com a cara da Madonna
até lhe vermos os dentes; inclinava-me na cadeira
contra a parede a apanhar sol. Vão a medo. Vão com medo
de mim. E aonde vão, vão com as minhas boas graças.
Estou aqui em cima com muita coisa de reserva.
O céu da noite inunda-se, depois clareia, desfralda uma só estrela,
e a cidade recolhe ao silêncio debaixo da minha arma.
A mulher, a criança, o avô, não são coisa nenhuma, ou nada mais
do que a história pode ignorar, ou o amor apagar.
David Harsent, Selected Poems 1969–2005, Faber & Faber, 2007
(Tradução de Hugo Pinto Santos)
Mergulho
Um pouco mais fundo, a luz perde-se dela. Primeiro
mal se pode tocar a superfície – há formas que podiam ser nuvens,
pássaros em voo... Ela pousa a cara na espuma,
a ver pela última vez o mundo de onde veio, uma frágil
impressão de vozes que esmorecem enquanto ela se escoa
desde a alvorada até ao anoitecer, um sombrear glauco que vai
primeiro ao azul, depois mais que azul, e logo a um azul nunca visto
por ninguém que não ela, e aquele lento curso descendo disposto a cindir
tudo quanto ela tinha ou queria, tudo o que ela havia sido.
David Harsent, Fire Songs, Faber & Faber, 2014
(Tradução de Hugo Pinto Santos)