O prazer de esticar a corda no DocLisboa
Uma relação complexa com o real – isto, nos filmes. Um prazer em esticar a corda – isto da parte de quem os programou. Mas "não há nenhum filme aqui que não fale da vida. Nenhum filme aqui é inacessível", diz Cíntia Gil, um dos elementos do DocLisboa que apresentam a edição 2015.
Cíntia Gil, Davide Oberto e Tiago Afonso, que na terça-feira apresentam o programa na Culturgest, em Lisboa, falam de uma "relação muito complexa com o real" como denominador comum aos filmes que escolheram para esta edição – num festival dcdocumental, os filmes são "cinema e não apenas documentário", com isto querendo dizer que os cineastas afirmam os seus dispositivos formais de forma assertiva sem preocupações de caracterização e de norma. E assim o DocLisboa continua uma relação dialéctica com os espectadores – "que cada vez mais têm acesso ao discurso, ao conhecimento" das transformações que se dão no cinema documental.
"De alguma maneira, foi sempre disto que estávamos à procura" – resume Cíntia Gil.
"Isto" é o que podemos ver, ela concorda, eles concordam, logo no filme de abertura, Bella e Perduta, de Pietro Marcello (o realizador de La Bocca del Lupo, de 2009, que vimos no IndieLisboa). Participação na competição internacional, é uma síntese do que se vai passar nos dias que se seguirão. Tendo começado por ser um filme sobre a história, verídica, de um camponês que procurava salvar um palácio rural da ruína, e tendo-se tornado, com a morte do camponês durante a rodagem, numa fábula, com o realizador a ter de reinventar o filme, Bella e Perduta, diz Cíntia Gil, está ancorado num contexto italiano e rural, mas a carga "romanesca e poética parecem ser a via mais rigorosa para olhar a realidade".
Continuaremos na Itália rural e no romanesco, no fantasmagórico e na fantasia, em Il Solengo, de Alessio Rigo de Righi e Matteo Zoppis: a descoberta de lugares e tradições de uma Itália rústica, pouco conhecida e a caminho do desaparecimento, faz-se ancorando-se (melhor: perdendo-se) numa figura de dimensão lendária, um homem que recusa a convivência com os outros. Na Rússia rural, o chefe de uma enorme família resolve filmar O Principezinho, de Saint-Exupéry, com a câmara que comprou com o dinheiro da pensão... foram dois anos de trabalho... e The Little Prince, de Olga Privolnova, é o retrato de uma geografia humana e social em decomposição. O "documentário de entrevista" – género que a televisão banalizou – reencontra-se com a possibilidade de pujança: eis MyTalk with Florence, de Paul Poet, ou a história de uma vida, 50 anos narrados por uma sobrevivente, Florence Burnier-Bauer. Filha da burguesia, fugiu da família disfuncional e violadora, para se encontrar, ela e os filhos, na rua e entre a criminalidade, e, finalmente, procurando refúgio na contracultura – a seita e a comuna de Otto Mühl, em que o ciclo da violência, do abuso recomeçou.
Estes são alguns dos 20 títulos da competição internacional, onde estará ainda o português A Glória de Fazer Cinema em Portugal, em que Manuel Mozos inventa um passado cinéfilo para o escritor José Régio – documentário sobre o que podia ter sido... O júri nesta secção é formado por Eva Sangiorgi, directora do Festival Internacional de Cinema da Universidade do México, Haden Guest, director do Arquivo Cinematográfico de Harvard (está a escrever uma história crítica do cinema português após a Revolução de 1974), Hartmut Bitomsky, realizador, argumentista e produtor, e Karpo Godina, director de fotografia e professor.
É pelos mesmos parâmetros – complexidade e manifestações formais assertivas – que se mede a Competição Nacional. "Fortíssima" este ano, segundo Cíntia Gil: Acorda, Leviatã, de Carlos Conceição, Rio Corgo, de Sérgio da Costa e Maya Kosa, Vila do Conde Espraiada, de Miguel Clara Vasconcelos – ficção e autobiografia), Où est la Jungle, de Ivàn Castiñeras Gallego, Raimundo, de Paulo Abreu, Setil, de Tiago Siopa, Talvez Deserto, Talvez Universo, de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman (a clausura psiquiátrica filmada a partir de um lugar de proximidade com "os doentes"; segundo Davide Oberto, é "um filme aparentemente frio, mas incrivelmente delicado"), e Portugal – Um Dia de Cada Vez. Este, colaboração entre o realizador João Canijo e a actriz Anabela Moreira, é um road movie pelas aldeias do interior de Portugal, Trás-os-Montes e do Alto Douro, retrato de pessoas e de lugares, em que, diz Tiago Afonso referindo-se à violência do quotidiano social de que o filme se abeira, "as personagens não são desprezadas mas também não são defendidas". Cìntia Gil propõe mesmo uma "conversa" de contrários: Portugal – Um Dia de Cada Vez e As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes. O que quer que seja, este é o resultado de um ano de viagens de Anabela Moreira pelo interior de Portugal. O que quer que seja, a versão de 155 minutos apresentada no Doc é apenas uma parte de uma série para televisão, 12 x 50 minutos, a única hipótese de abarcar a totalidade do material que foi filmado com o propósito de confrontar a realidade com as descrições paradisíacas de um Guia de Portugal.
O júri desta secção é constituído por Christopher Allen, director artístico do UnionDocs, centro para a arte do documentário, em Brooklyn, Eloy Enciso, professor e cineasta, Jasmin Basic, historiadora de cinema.
Como já tinha sido divulgado, um ciclo sobre a representação do terrorismo no cinema é uma das armas da edição. Anda a ser pensado pelos programadores há três anos, foi desencadeado pelos 39 minutos de filme, três linhas de diálogo, e 18 assassinatos nas ruas de Belfast, Irlanda do Norte, de Elephant, de Alan Clarke (1989): a cadência de planos que se repetem, é um back to basics de gestos de violência, rituais e de iconografia à espera do que possa deflagrar na sala. “Estamos numa nova vaga de exuberância dessa palavra [terrorismo]. Mas também de regulamentação do termo ‘terrorismo’ nos sistemas jurídicos dos vários estados para assentarem um sentido da palavra”, dizia Cíntia Gil quando anunciou ao PÚBLICO Terrorismo, Representação. Que mostrará filmes de Holger Meins e Ulrike Meinhof (eram militantes de extrema-esquerda nos anos 70, o grupo Baader-Meinhof, eram cineastas, atiraram bombas, fizeram filmes) e o ponto da situação, a quente, tentado pelo Novo Cinema Alemão (Kluge, Fassbinder, Schlöndorff, Reitz, entre outros) e que se chamou Alemanha no Outono (1978).
Ainda, The State I Am In, primeiro filme para o grande ecrã de Christian Petzold (Phoenix), história de um casal de ex-terroristas que vê o seu disfarce de 15 anos ser exposto pela filha; United Red Army, de Koji Wakamatsu (2007), três horas a explicar os movimentos radicais estudantis japoneses dos anos 1960/1970; Colpire al Cuore (1982), de Gianni Amelio, título que parte de uma expressão do fraseado revolucionário da extrema esquerda italiana dos anos 70 e 80 – atingir o coração do Estado capitalista – para contar a história de um golpe no coração familiar: um filho entrega o pai (Jean-Louis Trintignant) à polícia (a relação entre um pai, industrial, e o seu filho que foi raptado – vítima das Brigadas Vermelhas ou instrumento delas? –, está também no centro do maior filme de Bernardo Bertolucci, A Tragédia de Um Homem Ridículo, 1981).
Uma das apostas arriscadas por esta edição é a retrospectiva dedicada ao sérvio Želimir Žilnik, cineasta cuja obra nasce com a sublevação estudantil na Checoslováquia, depois da invasão soviética de 1968, debate-se com a censura na Jugoslávia e acompanha a reconfiguração territorial, com a implosão do Leste. Programada por Augusto M. Seabra (crítico do PÚBLICO), a secção Riscos vai radicalizar os seus pressupostos: ficções do real, auto-retratos, trabalho sobre o arquivo e a found footage. Um dos acontecimentos será a exibição de Five Year Diary (1981-1997), um dos “arquivos” deixados por Anne Charlotte Robertson (1949–2012), que enfrentou a desordem mental com a ajuda do Super 8: exposição, terapia, catarse e... a existência.
"Não há nenhum filme aqui que não fale da vida. Nenhum filme aqui é inacessível", diz Cíntia Gil, quando se fala do risco e do prazer de "esticar a corda" numa programação. Dizem todos que programar é um exercício de liberdade. E que esse prazer é uma forma de generosidade para com o público.