Criador de Calvin e Hobbes regressou em segredo
Bill Watterson, o genial autor de Calvin e Hobbes, retirado há quase 20 anos, desenhou três tiras da série Pearls Before Swine, do cartoonista Stephan Pastis, mas sem assumir a autoria, que só agora foi revelada.
E tudo no começou dia 11 de Abril, quando Stephan Pastis, o talentoso cartoonista da série Pearls Before Swine, divulgada em cerca de 700 jornais de todo o mundo, publicou na imprensa uma tira em que prestava homenagem a Bill Watterson, sugerindo que ele próprio era um ilustre desconhecido por comparação com o criador de Calvin e do seu tigre de peluche com queda para sandes de atum e observações sardónicas.
Usando-se a si próprio como personagem, um dos trunfos de Stephan Pastis é justamente o seu humor auto-irónico. Na tira em causa, Stephan (a personagem), circunstancialmente solteiro e disponível, entra num bar para tentar um “engate” de ocasião. Como a primeira mulher que encontra está ao balcão a ler a página dos cartoons, diz-lhe que ele próprio é autor de uma série. “Ai sim, e qual?”, pergunta a sua interlocutora. Stephan ainda hesita, mas acaba por responder com uma pergunta: “Já ouviu falar de Calvin e Hobbes?”. No último quadradinho, deitado na cama com a mulher do bar, em nítido contexto pós-coital, confessa a si próprio: “Isto foi errado”.
Na verdade, embora a tira de 11 de Abril tenha sido o primeiro sinal público deste enredo, os antecedentes da história remontam a uma semana antes. Mas o melhor é deixar que seja o próprio Stephan Pastis a contar como as coisas se passaram. E vale a pena ler no original o delicioso relato que publicou no seu blogue. No início de Abril, o autor de Pearls Before Swine tentara encontrar-se com o fugidio Watterson, que desde a sua voluntária reforma só voltara a dar sinal de si quando aceitou desenhar o cartaz de Stripped, um documentário sobre a crise do cartoonismo de imprensa.
Pastis estava consciente de que eram poucos, mesmo no mundo do cartoonismo, os que alguma vez tinham conseguido falar com Watterson, e conhecia as muitas histórias que se contavam sobre a indisponibilidade radical do desenhador para tudo o que lhe cheirasse a publicidade ou vida social: dizia-se que Steven Spielberg o contactara para fazer um filme e que nem sequer aceitara atender o telefonema do realizador. Pastis não tinha, portanto, grande expectativa de ser bem sucedido. Mas como estava em Cleveland e Watterson morava ali perto, e até tinham um amigo comum, o cartoonista Nick Galifianakis, do Washington Post, achou que não perdia nada em tentar.
Pastis escreveu a Nick, Nick escreveu a Watterson e – resume laconicamente Pastis – “o encontro não aconteceu”. Ainda assim, Nick convenceu o amigo a contactar directamente Bill Watterson, enviando-lhe um email. Pastis, convencido de que o seu ídolo não estava para o aturar, retorquiu que não queria incomodá-lo. Mas uma semana mais tarde, quando saiu nos jornais a tira em que aludia ao autor de Calvin e Hobbes, achou que tinha ali um bom pretexto e acabou por seguir o conselho do amigo.
Enviou-lhe a tira, disse-lhe o quanto admirava a sua obra e agradeceu-lhe a influência que tivera no seu próprio trabalho. “Nunca esperei receber uma resposta, mas, querem lá ver, ele respondeu mesmo”, conta. E garante que receber um email de Bill Watterson foi uma das experiências “mais surrealistas” que teve: “Bill Watterson existe mesmo? E envia emails? E está a comunicar comigo?”.
Estava. E não só achara piada à homenagem do colega de ofício, como acrescentava que tinha uma ideia para uma tira cómica que achava que poderiam fazer em conjunto. Stephan Pastis comenta que as probabilidades de o lendário autor de Calvin alguma vez lhe propor algo de semelhante eram sensivelmente as mesmas de Jimi Hendrix lhe vir dizer que tinha um novo riff de guitarra. “E, sim, tenho noção de que Hendrix está morto”.
Mesmo sem saber do que se tratava, aceitou de imediato: “Farei o que quiser, incluindo incendiar o meu cabelo”. (E, não, Pastis não é careca). A ideia de Watterson era usar o facto de Pastis estar constantemente a gozar, nas suas próprias tiras, com a sua falta de talento como cartoonista para arranjar um pretexto que justificasse a sua substituição (na história) por outro desenhador, que tomaria o seu lugar. Watterson propôs que a personagem de Stephan levasse uma pancada na cabeça, ficasse inoperacional e, durante uns dias, Watterson desenhasse anonimamente as suas tiras.
Pastis contrapôs outra ideia: criaria uma nova personagem, uma menina de 7 anos, aluna da segunda classe, que achava a arte de Stephan uma boa porcaria e a quem este desafiaria a fazer melhor. Chamou-lhe Libby, nome que depois encurtou para Lib, uma pista para quem conseguisse ver que era (quase) Bill escrito ao contrário.
Na primeira tira resultante desta conspiração – o compromisso com Watterson era o de que a sua co-autoria só seria divulgada no final –, Libby toca à porta de Stephan e explica que tem de entrevistar um cartoonista para um trabalho da escola. As coisas não acabam muito bem.
Na tira seguinte, Libby explica a Stephan que acha os seus desenhos muito maus (usa um impropério grafado em linguagem BD, com uma sucessão aleatória de símbolos gráficos) e que os textos não são melhores.
Por esta altura, Pastis confessa que sempre que propunha uma alteração, receava que Watterson se irritasse e se desvancesse no éter. “Quando quis mudar um diálogo, prefaciei a sugestão com a declaração de que me sentia um miúdo de rua a dizer a Michelangelo que as mãos do seu David estavam demasiado grandes”. Mas constatou que, afinal, Watterson não podia ser mais flexível e que era muito divertido trabalhar com ele. Apesar de ter sido necessário superar alguns obstáculos de ordem prática, que Pastis não descreve para não comprometer a privacidade que Watterson tanto se empenha em preservar, mas que resume numa breve inconfidência: “a tecnologia não é sua amiga”. Depois de perceber que o seu cúmplice não estava muito habituado a lidar com scanners, programas informáticos mais ou menos básicos, ou mesmo anexos de emails, Pastis assegura que acabou por se convencer de que Watterson “trabalha numa cabana alumiada a óleo de baleia e, quando acaba os seus trabalhos, entrega-os a um homem montado a cavalo”.
Na pele da pequena Libby, Bill desenha então três tiras sucessivas, publicadas na imprensa nos dias 4, 5 e 6 de Junho. Na primeira, Stephan é comido por um crocodilo (há um grupo de crocodilos que é presença habitual da série), na segunda uma das personagens principais de Pearls, um porco, comenta com outra personagem, um rato, que agora que têm “um verdadeiro artista”, talvez as coisas mudem.
Por esta altura, Stephan já percebeu que a menina – uma aluna do segundo ano do ensino primário é, em inglês, uma “second grader”, o que pode ser um jogo de palavras com as equações de segundo grau, sugerindo que há aqui uma incógnita, um “x”, a identificar – desenha melhor do que ele. E quando Libby o desenha como um Adónis musculado rodeado de mulheres em bikini, o alter-ego do cartoonista pede-lhe que desenhe as suas tiras para sempre.
Mas LIbby recusa, argumentando que o cartoonismo é uma arte em extinção. E na tira seguinte, já desenhada por Pastis, e que fecha a história, um desolado Stephan vê a menina partir. “Vou-me embora. Estou farta de desenhar. E. além do mais, há lá fora um mundo mágico para explorar”, diz Libby. O autor de Pearls fechava assim esta colaboração com uma última homenagem a Watterson, já que a explicação de Libby reproduzia a fala de Calvin na tira que encerrou a série Calvin e Hobbes, há quase 20 anos.