Costa Pinheiro: Muitos dos meus quadros continuam silenciosos, lá no atelier

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Costa Pinheiro é apontado como autor de uma "obra maior" da arte portuguesa da segunda metade do século XX Pedro Elias

O velho jeep baloiça como barco em mar agitado, no caminho que foi de cabras, entre amendoeiras e alfarrobeiras, e hoje, de terra batida ainda, serve apenas os veículos da casa e os dos que a visitam (amigos que os donos gostam de cultivar, cá e lá fora). Encontrámo-nos no largo de igreja de Quelfes, aldeia a dois passos de Olhão. A ausência de tabuletas indicativas e o mau tempo que alaga estradas quanto mais congostas de chão descarnado pelas águas que correm da encosta da serra, levaram o pintor a aconselhar-nos a estacionar o carro citadino junto da pequena igreja de portas e arcos seiscentistas.

Conduz devagar, no mesmo tom calmo de “traquilo alentejano” com que fala. Alentejano de nascimento e infância, sim, mas convertido aos Algarves por via de um dos ramos da família, de que herdou, por vontade unânime das irmãs, o Monte dos Caeiros, para onde seguimos.

António Costa Pinheiro – é com o pintor distinguido com prémios de alto significado no mundo alemão e português das artes plásticas que viajamos no breve percurso entre a aldeia e o monte – mostra-se tão à vontade na condução do carro pelas poças amarelas da terra serrana, como se movimentava por praças, jardins, esplanadas de Munique naquele encontro fulgurante que celebramos hoje, porque ambos nunca mais o esquecemos, 35 anos passados.

“Tenho saudades de Munique”, confessa. “Nunca pensei que pudesse vir a tornar-me numa espécie de vítima da minha própria fuga”, diz, evocando a cidade bávara do exílio anti-salazarista, onde, de resto, mantém casa e continua a ser coletado.

Rebela-se contra a ameaça de doença que veio, insidiosa, tentar perturbar-lhe a segurança da mão que há seis décadas domina pincéis e tintas. O neurologista portuense, dos mais famosos do país, afugentou-lhe fantasmas, cheio de optimismo. Mas o pintor não disfarça a raiva que o assalta quando chega a hora de tomar mais um “produto químico disfarçado de cura milagrosa”.

Ele que parece sentir-se bem na pele de universonauta, dirá, por mais de uma vez, ao longo do dia: “Tenho pena, às vezes, de abandonar este planeta”. Mais do que o peso dos 76 anos, tudo indica, pela ternura com que deles fala, que é a saudade antecipada dos quatro filhos (um casal de cada casamento) e dos dois netos. À qual se juntará, talvez, também, a preocupação de pai de família que já andava na casa dos 50 quando casou pela segunda vez, vindo a ter de Katrin (a sua actual mulher, a quem chamará sempre, portuguêsmente, Catarina) um rapaz (Adrian, 17 anos) e uma rapariga (Laura, 25) que percorrem ainda a via académica.

Transpomos o portão, saltamos a evitar poças de água e lama até à entrada a casa, que dá directamente para a cozinha e para o sorriso luminoso de Catarina. Mais à frente, à esquerda, o atelier, de paredes brancas altíssimas e de quase um metro de largura. Todo banhado de luz que entra por janelas rasgadas ao alto, de lado, em baixo, na divisória que antes era cavalariça e que agora chega a chamar capela, pela tranquilidade suave que dela emana.

Quelfes, pois. Sábado todo o dia chuvoso e frio, com breves abertas de sol e luz. Primeiro sentados - entrevistador e entrevistado de perfil para uma tela inacabada no cavalete – junto de uma das janelas. Aquela que dá para o verde do campo – uma nesga apenas dos quatro hectares que se estendem à frente da casa, branca e azul, no alto do monte, em pleno barrocal algarvio.

Vejo no cavalete um quadro que nos mostra um parque, um homem e uma mulher. Continua na fase do Elas e Eles? ANTÓNIO COSTA PINHEIRO

– Isto é uma brincadeira. Tem a ver com um par de quadros que pintei e expus em Munique e a que chamei: “Passeios com Ela no Parque Inglês de Munique”. Este não é o Parque Inglês. Isto é “Uma viagem interplanetária com ela”[ri-se, com gosto].

É natural de Moura, onde esteve até aos 10 anos. Daí foi para Lisboa. Depois para Paris, Munique. Agora vive em Quefes, mantendo casa na Alemanha. O Alentejo desapareceu da sua vida?

Uma vez os meus primos da bela cidade alentejana que é Moura interpelaram-me nesse sentido. Tinha lá ido mostrar à Catarina e aos nossos filhos o local onde tinha nascido e vivido. A minha adolescência foi passada em Lisboa com os meus pais e irmãs. Venderam-se as courelas, desfez-se o património do pequeno lavrador que era o meu bisavô – um patriarca de quem tenho memórias muito nevoentas, como se diz no Alentejo.


Estudou aonde?

Primeiro no Liceu Camões, até ao terceiro ano quando disse ao meu pai:


- Não vou ser bom aluno do liceu. Acho que devia ir para a Escola de Arte.


- Escola de Arte? Ó filho, vais morrer à fome.


Expliquei-lhe como era a [Escola de Artes Decorativas] António Arroio [em Lisboa] e ele lá se convenceu. Mas ao fim de dois ou três anos saí. Depois do serviço militar fui para Munique e aí fui para a Academia de Belas-Artes.


Por que é que saiu da António Arroio?

Entrei numa de vadiagem mental. Acabei por conhecer um núcleo de jovens artistas ligado ao Fernando Lemos, Fernando Azevedo, Vespeira, em que eu era o mais jovem. Fizera-se várias coisas ligadas às Feiras Industriais e eu ia ganhando dinheiro.


Pintava, também?

Pintava. Este quadro aqui [aponta para uma fila de pequenos quadros na parede], parece um Coreau, pintei-o com 17 anos. Também me dava com pessoas ligadas às artes gráficas, como Sebastião Rodrigues, um homem muito importante na modernização das artes gráficas em Portugal. Fui armazenando todas essas potencialidades, apesar de limitadas politicamente em Lisboa. É então que resolvo pegar na tralha e ala.


Foi sozinho?

O René Bertholo e a Lourdes de Castro tinham acabado de casar. Viviam em Queluz. Ele fazia trabalhos gráficos para a revista da Shell. Cheguei de Paris, numa viagem em que tinha estado também no sul da França e em Madrid, fui visitá-los e a certa altura virei-me para eles:


- Não percebo.


- O que é que foi, pá?


- Você instalaram-se aqui de armas e bagagens, só falta o berço para o menino?


Só foi preciso um mês. O René telefonou-me: “António, decidimos ir embora”. Foram até antes de mim, com o Gonçalo Duarte. Para Munique.


Influenciou-os a eles para saírem de Portugal e eles influenciaram-no a ir para Munique?

O René sempre quis ir para Paris. A Lourdes tinha formação germânica, dada por uma senhora alemã na ilha da Madeira. Passei ainda por Paris e fui ter com eles a Munique, onde eles já tinham uma casa.


O que é que oferecia Munique nessa altura, que não podia ser encontrado em Paris, a cidade para onde os artistas iam?

Toda a gente ia para Paris. Eles foram para Munique porque eu lhes disse que ia ter com eles lá, depois de passar por Paris. Foram buscar-me à estação. Um pintor alemão influenciou os meios culturais para nós obtermos bolsas de estudo. Eles tiveram um semestre e depois zarparam para Paris. Eu continuei na Academia de Belas-Artes, com o Gonçalo. Havia uma certa tendência para considerar Munique, em comparação com Paris, a cidade bonita, mas do Luís II da Baviera, um louco. Esqueciam nomes essenciais que estiveram lá, do [movimento expressionista alemão] Blaue Reiter – Kandinsky, Paul Klee, Jawlensky, Lissitsky, Malewitsch – e a extrema importância que a cidade (apesar de muito reaccionária do ponto de vista político) teve na artes, na música, no cinema, na literatura do século XX.. Foi dali que saiu a Bauhaus toda, para Weimar. Havia ali um choque de culturas


Quanto ao meu percurso de vida, Munique tem que ser visto de vários lados, até questões de ordem pessoal – amores, prolongamento da bolsa pelo ministério alemão, separo-me da minha primeira mulher, penso depois ir de novo para Paris. Daqui para a frente é um romance, ando num corrupio constante. Não era só a amizade, mas também a parte política e o nosso convívio, que nos levou a criar uma revista e a fazer exposições do grupo em Itália, na Alemanha e em França.


Está a falar do grupo que fundou por essa altura, o KWY...

...o ká wamos yndo...


Lembra-se do dia em que decidiram formar o grupo?

Os primeiros sintomas apareceram em Munique, onde estávamos os quatro [René, Lourdes, Gonçalo e Costa Pinheiro. Juntar-se-ão ao grupo: Jan Voss, Christo, João Vieira e Vespeira]. Mas é-me difícil descrevê-lo com rigor.


O nome o que significa?

Eram três letras que não existiam no alfabeto português. E que nós aproveitámos para aquela frase irónica que disse há pouco.


As três letras vão passar a existir, com o acordo ortográfico...

Imagine o que isso tem de significativo...


Por quer é que o grupo acabou?

Não sei. Há um desencanto que de repente se pode desenvolver. O Christo foi para Nova Iorque, o Jan Voss foi viver fora de Paris. Isto embora a galeria Mathias Fells os tenha unido de certo modo.


O que é que vos tinha feito juntar?

Por diversas razões o René e a Lourdes eram predestinados para esse tipo de coordenação. Ainda se fizeram 12 números da revista, que nos aproximou mais uns dos outros. A identificação não tinha nada a ver com identificação estilística, mas com a entreajuda. Era, no fundo, uma espécie de necessidade de protecção. Ficámos amigos durante décadas, vamo-nos agora despedindo do planeta. Foi esse o laço mais forte do grupo.


Mas não podia ser só a amizade. Tinha que haver uma comunhão artística também

Uma coisa sem a outra não fazia sentido. Cultivávamos um certo "savoir vivre".


Mais nada?

É preciso ter cuidado e não confundir-nos com um grupo de arte, por exemplo, como o Cobra, com uma ideologia apropriada às ambições do grupo e que ficou conhecido no movimento da nova figuração. Ou com o grupo alemão SPUR [Pegada). Fizemos a revista, que muitos críticos consideravam brilhante e que representava de facto o esprit da pintura jovem da época. Mais do que isso é difícil articular. Eu, pelo menos, sinto essa dificuldade. Quando me faziam essa pergunta eu respondia que em primeiro lugar eram valores da amizade. Tínhamo-nos conhecido quase na escola, em Lisboa.


Mas há também estrangeiros

O Jan Voss e o Christo. Este veio da Bulgária. Foi a Lourdes de Castro que o conheceu primeiro, numa daquelas galerias parisienses de avant-garde. Mas penso que foi isso essencialmente. Não havia uma linha traçada sobre aquilo que queríamos fazer. Não tínhamos a pretensão de criar um caminho diferente dos existentes nas artes, que nessa altura estavam na mó de cima: os movimentos americanos, a pop-art inglesa de que éramos parentes.


O que é que faltava a Portugal então, no domínio das artes?

Não havia apoios. Os únicos coleccionadores de arte eram os irmãos Vinhas e um outro com uns tostõezinhos que nos compravam peças vendidas aliás muito baratas. Depois em Munique, quando vendemos os primeiros trabalhos feitos sobre papel passámos a noite a comer e aos pinotes pela cidade velha.


O que é que vocês trouxeram às artes plásticas portuguesas e estrangeiras?

É muito difícil responder. Tem que se falar no refúgio, no nevoeiro [duas palavras recorrentes na fala do pintor, para designar um “problema histórico nunca resolvido” pelo portugueses, que depois de inventarem o nevoeiro e de lhe acrescentarem “um desaparecidos que provavelmente aparecerá”, nele se refugiam, incapazes de sair do labirinto em que se deixaram aprisionar]. Por que é que os artistas portugueses iam lá para fora? Hoje as coordenadas são diferentes - um Pedro Cabrita Reis ou um Julião Sarmento não seriam possíveis. Foram lá para fora, aprenderam a lição...É muito difícil encontrar as coordenadas de análise do ponto de vista da história dos acontecimentos


Há, no percurso de Costa Pinheiro, uma rebeldia interior contra o êxito, que o define enquanto artista e cidadão. Primeiro quando apresenta, em Munique, a série sobre os Reis, recebida com entusiasmo pela crítica. Pára. Já explicou, noutras entrevistas, que o sucesso da série o bloqueou. O que iria pintar depois daquilo? “Ia fazer repetições que traziam sempre o mesmo e que negariam a própria criatividade?”. Prefere agora acentuar um outro aspecto. Menos virado para a obra e mais para o contexto em que ela mergulhava – o mercado, cujas regras lhe repugnam e a que reage. Deixa de pintar, pois. Ou melhor, afasta-se das galerias. E afasta os amigos do seu próprio atelier. Durante sete anos ninguém sabe o que está a fazer. Emprega-se como barman. Mas continua a pintar. Às escondidas. Um dia, surpreende todos com uma nova série. Desta vez sobre Pessoa. O êxito volta a ser enorme. E ele vota a desconfiar do mundo e de si mesmo e abandona a pintura. É então que faz a série “La Fenêtre de ma Tête”. Cerca de 30 quadros, a que chama uma “auto-retrospectiva” do seu trabalho inicial, nos anos 60.)


O que é que quis dizer ao mundo quando se afastou dos circuitos comercias da arte?

Por essa data – anos 67/8 – estava à porta o Maio 68 e essa inquietação existia em múltiplos movimentos da juventude estudantil e do operariado. De um lado os sindicatos com a sua ala juvenil, bem estruturada politicamente, e do outro os jovens operários, filhos de operários de uma região industrial.


Em que é que isso o influenciou?

Deve ter-me influenciado. Basta ver a maneira como respondi ao director do museu Guggenheim, dr. Thomas Messener [quando este o convidou para ir para Nova Iorque pintar]: “Estão a cair bombas no Vietname. Estão crianças a morrer”. Isto sou eu que sou um D. Quixote, que sou um pateta, que estou a acreditar que ainda há modelos humanistas para resolver situações difíceis da Humanidade? Penso que não, isso seria de uma arrogância idiota.


Será que isso queria dizer que na sua cabeça a arte era uma actividade inútil?

Não tem a ver com a marca do objecto da arte. Tem a ver com o artista. São pressões que acabam por acontecer e que o tornam dependente [do mercado] e isso chocou-me muito. Mobilizar valores na arte moderna na sua aparência só tinha a importância de um calendário de compras e de vendas.


Uma década depois, está de volta. Porquê?

Não foi por medo de não ter dinheiro para pagar a rede ou para comer. Um dos maiores trusts das publicações jornalísticas [a Burda...


...que aliás lhe deu um prémio...

Ele [Hubert Burda] assistiu à minha primeira exposição, em 1964, na galeria Leonhart, em Munique. Era estudante, estava doutorar-se em História da Arte. Gostou da minha exposição.


Tornou-se o seu mecenas?

Eu uma vez defini-o assim. Ele recusava-se a isso, mas eu respondi-lhe: “Não tens que recusar, porque és aquilo que na Itália da Renascença se chamava um mecenas”. Conto-lhe uma história. Um dia cheguei ao atelier completamente desanimado. O Ministério das Finanças tinha dito que eu tinha que pagar, imperativamente, a quantia X. A mulher dele, também doutorada em História de Arte e com quem me encontrava às vezes no Schwabing [famoso bairro artístico de Munique] a beber um café, contou-lhe. Ele mandou a secretária telefonar para o director de finanças daquele escalão e disse-lhe: “Este ano pagámos 50 milhões de marcos de imposto; 30 e tal milhões por referências da orgânica interna e económica [ele explicou mas eu não percebi bem a que se referia]. E vocês querem agora que um jovem artista, a quem sou eu que estou a proteger para ele viver, pague uma conta que não pode pagar? Não paga”.


A esse Costa Pinheiro que respondeu o que respondeu ao director do Gugenheim e que deixou de pintar para protestar contra o mercantilismo da arte não repugnou, nos finais do século XX, ser um protegido de um mecenas?

Aqui era um caso muito especial. Eu era bastante rebelde. Fechei os portões em relação à anexação que ele quis fazer de mim. O mecenato pode servir interesses paralelos aos interesses do mercado das Artes. Aquilo que tornou vital esta abordagem é que nós éramos amigos, convidava-me para um ou outro fim-de-semana na sua casa de Garmisch- Partenkirchen [uma estância de férias de inverno]. Isso nunca poderia “fechar os portões” à Cultura, sendo ela uma via do entendimento. A certa altura os meus quadros - os que tinha pintado antes desse período do “abstémio”, de reflexão, de crítica – deixaram de ser controláveis e disso não tenho que me envergonhar.


A mudança [que o fez regressar à pintura e ao mercado artístico] foi no mundo ou na sua cabeça?

As duas coisas. O que me parece relevante nessas mudanças é que as gerações depois da nossa têm um comportamento inquietante, alheio, criaram os seus próprios avatares, estão a caminho de criar os seus próprios ícones que são sempre um perigo. O radicalismo é tão grande que a geração da minha filha me diz que eu sou de uma geração do antigamente. Mas sossega-me logo a seguir: “Pai. Não fiques triste, porque era tão bonito, esse antigamente...”


Releva do mesmo tipo de rebeldia o seu “não” a um convite para ser professor na academia de Munique, cujo curso, aliás, não acabou?

Saias. Mas havia também nisso o receio de que me poderia vir a habituar a um lugar vitalício, bem pago. Recebi também um convite para ser professor de artes gráficas em Dusseldorf, que era dirigida pelo célebre Beuys e era considerada a melhor academia da Europa. Quem lutou por esse convite foi Rupprecht Geiger. Comecei a pensar comigo mesmo: 'O que é que isto tem de cativante? Vou ganhar dinheiro pela primeira vez na minha vida depois de alguns anos mal passados com a minha primeira companheira e com as crianças. Mas isto vai-me amolecer, vai fazer-me adaptar. Não’. Tinha os meus trinta e poucos anos. Seria o mais novo professores de academia, na Alemanha.


Acha que ser artista é não amolecer? Há casos de grandes artistas que tiveram êxito ainda em vida e não precisaram de amolecer para ganhar dinheiro e continuar a criar.

Eu sei que há contradições implícitas neste posicionamento que tenho. Mas tarde acabei por publicar um texto em que falo do outro convite do director do Guggenheim. Estava a minha exposição dos Reis em Munique. Ele foi lá vê-la e dirigiu-me o convite. Achava que eu devia largar a âncora em sítios mais abertos. Contou a minha resposta ao grande coleccionador alemão judeu, Bergruen, que doou a colecção toda à cidade de Berlim. Ele também foi ver a minha exposição e perguntou-me a razão que me tinha levado a recusar o convite do director do Guggenheim.


- “L’Amérique”, respondi


- “Mais, monsieur, New Yorque c’es pas l’Amérique...”


Sim, mas para mim, aquelas bombas a matarem e queimarem crianças não eram conciliáveis. Sei que sou tido como um idiota, mas o que hei-de fazer?


O que levou para Munique que tornou a sua obra notada e a sua figura apetecida?

Também não sei. Não sei se era este ar desajeitado que contribuía para que aquela gente, mesmo galeristas famosos que acabava por encontrar em Paris, em Munique, no norte da Alemanha, em Viena, ficassem com uma certa curiosidade: 'Deixa cá ver o que é que está por detrás disto...”


Naquele tempo estava irritado com o mundo ou com a arte?

Comigo mesmo, se calhar. Mas devo dizer que esse foi um período importante também para mim, porque abordei outras dimensões. Brinquedos para eu brincar e outros poderem brincar. Durante esses anos tinha uma tela branca no cavalete. Maior do que esta que vê aqui. Um italiano quando passava em Munique convida-me sempre para almoçar. Um dia disse:


- Hoje vou ao teu atelier, para ver se finalmente começaste a pintar.


- Ângelo, não. Vais encontrar uma tela branca que já lá está há uns cinco ou seis anos.


- “Mamma mia. Bello. Io te la compro.”


Já agora: para que lhe serviu essa tela?

Para fazer um dos retratos do Pessoa.


A série sobre Fernando Pessoa foi um risco, diz. Como quando voltou ao ciclo histórico, com os Navegadores. Tinha sido planeada na altura dos Reis, como continuação desta série. Mas só passados muitos anos, já na “terra pátria”, voltará a ela. “Isso não aconteceu gratuitamente. Aconteceu porque fazia parte de um emolduramento que eu ia fazendo em relação às figuras significativas dos Descobrimentos. Foram riscos que corri, tal como com o Pessoa. Ia entrar num campo da nossa história um bocado mitificador. Acho que aconteceu no devido momento.”


“Elas e Eles”, o ciclo que abre em finais dos anos 90 – aquele em que se encontra, ainda? –, leva-o para outra viagem.

[Levanta-se, de repente, quando introduzimos o tema. Dirige-se à parte de trás do cavalete, onde estão alinhadas numerosas telas, quase todas de grande dimensão. Retira o quadro sem título, que permaneceu como testemunha muda da entrevista, e coloca no seu lugar uma tela mais pequena, também aparentemente inacabada, de “um passeio com ela pelo jardim inglês de Munique”.


O primeiro parece estar no passado; este está mais ligado ao futuro, com as viagens pelo cosmos. Aparentemente os dois quadros estão a ser feitos ao mesmo tempo. Explica que o último “tem a ver com uma nostalgia romântica em relação ao significado que o jardim inglês pode ter” na sua pessoa, no seu “romantismo exacerbado”.]


- Está pronto?

Ainda estou a hesitar.


Quando é que um quadro está pronto?

Uma vez disse a um colega seu que o quadro para mim está acabado quando começa a olhar para mim. Às vezes tenho uma tela meses virada contra a parede e não olho sequer para ela. Quando a tiro, apercebo-me: 'Alto, há aqui algo que não está bem!...’


Voltamos a enfrentar a chuva e a lama, na descida para Moncarapacho, onde quer almoçar. O restaurante está encerrado, como vários outros seus preferidos em Olhão, para onde nos dirigimos. Insiste, debaixo de chuva, na busca de uma mesa livre na marginal, claramente o único lugar possível, no seu entender, para uma boa refeição de peixe.

A figura de Costa Pinheiro - confirmá-lo-emos de um modo mais flagrante à hora de jantar, de novo na marginal – é conhecida e respeitada aqui. Os donos dos dois restaurantes onde tomamos as refeições tratam-no como amigo. Transparece-lhes orgulho dessa proximidade natural com que o relacionamento se estabelece.

Os outros dois filhos vivem em Espanha e nos EUA. A primeira mulher morreu recentemente.

Embora se isole muito com Katrin e os filhos, no monte (os outros dois filhos vivem, um em Espanha, a outra em Munique; a primeira mulher morreu recentemente), encontra em Olhão o suplemento de convívio de que necessita. O município encomendou-lhe mesmo dois grandes trabalhos que lhe colocaram a imaginação, a mestria e o nome no Mercado, um dos locais emblemáticos da cidade, onde criou “um espectáculo cheio de referências à natureza-ela-mesma”.

Na breve viagem, há tempo e distensão para insistir na pergunta já várias vezes feita de manhã e que haveremos de voltar a formular, mesmo já depois do regresso a Lisboa: Qual o segredo (se o há) da criação de uma tela? Sobretudo quando se trata de um pintor como ele, que por mais de uma vez se deu ao luxo de deixar de pintar durante anos, para não se sentir dependente do mercado?

Dá uma resposta qualquer, ao lado. Tentamos chegar ao mesmo objectivo abordando a questão do processo criativo, para o qual elencamos um conjunto de hipóteses. Partirá ele de uma ideia inspiradora? De um tema que se impõe? De um acidente (a mão dirige-se para onde lhe apetece no momento)? O que é que começar por desenhar, as figuras ou o cenário?

Costa Pinheiro não se deixa enlear nas palavras que ouve. “Estamos a tentar chegar com os dedos à peça de cristal mágico. Não é nada fácil. Se olharmos bem para um passado cultural nosso, como civilização encontramos esse ponto de interrogação cósmico. Não saberei responder. Se me perguntar, quando acabo um quadro, se eu gostei dele, eu responderei que tenho que gostar dele se não também não gosto de mim. Percebo a sua inquietação, mas não consigo ir mais longe.”

Perante a ameaça de beco sem saída, derivamos no regresso ao atelier, pelas três e tal da tarde, para as perguntas sacramentais. Pelo menos para recomeço de uma conversa que nunca deixará de ter como tema central o seu percurso fascinante - de Moura a Lisboa, a Paris, à prisão de Caxias, a Munique e, agora, entre o barrocal algarvio e a capital bávara. Sem esquecer a dimensão cósmica de universonauta do pintor e cidadão, que nem por um segundo imagina a possibilidade de que o planeta Terra exista sozinho, “quase escondido no fim da galáxia e rodeado de milhões de planetas”.

Um quadro de que goste acima de todos os outros, portugueses e estrangeiros?

Costumam-me dizer que eu fujo com o rabo à seringa. Mas na verdade eu penso sempre em termos da obra e do próprio artista. Por exemplo, o Ticiano é um monumento. Mesmo na modernidade, o Kandinsky. Mas tem vários períodos, desde que se instalou em Munique. O Paul Klee. O próprio Picasso. O Cézanne. Gosto deles da mesma maneira. Acho que seria um atrevimento [pôr uns à frente dos outros], que só por razões especulativas pode existir. Ninguém pode dizer que este quadro é melhor do que aquele. Cinjo-me mais àquilo que é relevante e teve uma presença importante na história da arte, que é tão rica no século XX que a gente perde-se.


Portugueses?

Tenho uma certa dificuldade em fazer acertos. Lastimo muito a perda do Pousão [Henrique, 1859-1884], um grande pintor que morreu muito jovem, o Amadeo de Sousa-Cardoso [1887-1918]. Há pintores que fizeram parte do cubismo – italianos, franceses, belgas, alemães – muito mais pobres. Por que é que isto acontece entre nós? Os espanhóis na actualidade vão a todo o lado. Nós, quando se faz uma promoção, faz-se uma promoção prepotente.


Não houve portanto nenhum quadro que o fez dizer: “Eis a obra”?

Ou ainda não o vi ou não sei da existência dele. Gosto muito de coisas do Tiziano, do Boticceli, toda a a obra inventada das maquinetas de Leonardo da Vinci, o Rembrandt, genial, o alemão Altdorfer [1480-1538]. Também gostei muito do [norte-americano de origem arménia] Ashile Gorky, que se suicidou em Nova Iorque com pouco mais de 40 anos.


Como se define enquanto pintor? Num dicionário de História de Arte, onde gostava que o situassem?

“Imaginativman”. Os movimentos, tendências, estilos, escolas, são um conglomerado de experiências. Ficar escondido no dicionário e admirar a História de Arte.


Olhando para trás, quais os momentos marcantes da sua obra?

O período de transição da Citymobil para o Pessoa. Dá a impressão que é uma linguagem que se contradiz na sua feitura, nas suas intenções. Uma, a arte urbana de que há agora uma inflação; a outra, esta entrada na poesia. Fui para o mosteiro. Durante o período da citymobil fiz um diário, que publiquei num dos catálogos.


Qual o quadro que indicaria como representativo da sua obra?

Há dois que para mim têm importância. Este [aponta para a parede] “Domador de Leões” [pintado ainda em Portugal em 1955, nove anos antes de dois outros que há-de apontar também, na mesma parede: “O Rei menino não voltou” e “O Muro Branco”, ambos de 1964]. Foi uma experiência. Estava à procura de uma linguagem gráfica. Vê-se isso no jogo implícito das cores entrecruzadas. [Mostra o tal segundo quadro a que se referira, intitulado “Janela”] E depois há este quadrinho, que mostra o meu primeiro despertar para a pintura, e que faz lembrar a influência, sei lá, de Matisse.


Qual o seu quadro que, se pudesse, iria hoje comprar, para ficar com ele?

Tem o título de “Universonauta no Planeta das Poeiras Cósmicas”. É de 1971/73 e tem 130x200 cm. É um quadro mágico. Tinha-lhe perdido o rasto e há umas semanas uns amigos disseram-me que estava à venda numa galeria do Porto. Pintei-o isolado, e como tal ficou.


Porquê mágico?

Foi pintado naquele meu período de silêncio. Foi o único que pintei. Veja a ironia. Pintei-o quando me afastei do mercado da arte e ele agora surge, no mercado, a um preço altíssimo, segundo me disseram os meus amigos. Escapou-se, como peixe em água, e agora ressurge. Como se estivesse revoltado.


Um museu?

Vi muitos, sobre tudo relacionados com a Renascença italiana. Magnífica época, era sempre um descobrimento. Tenho pena de não conhecer o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e de não ter ido ao Guggenheim de Bilbau, embora me digam que a colecção tem altos e baixos. Portugueses? Serralves, a Gulbenkian, que fez um trabalho pioneiro em vários sectores da vida cultural portuguesa.


Conhece algum coleccionador extraordinário?

O Heinz Bergruen. Das melhores colecções de arte do século XX. Não sei se ainda é vivo. Contou-me um jornalista que não há muito tempo o viu descer do quarto às salas onde estava a colecção e ficar ali horas a passear e a olhar para os quadros. Esse jornalista perguntou-lhe no dia seguinte porquê. “Estava a despedir-me deles”, respondeu.


Essa lembra a história do avô Jerónimo, de Saramago, que antes de morrer foi ao quintal despedir-se uma a uma das árvores, abraçando-se a elas... Qual o momento essencial da sua vida?

O nascimento dos meus filhos. Um desafio, sobretudo estes (da segunda mulher). Apanharam-me cinquentão, mais experiente, menos problemático, talvez. Veio iluminar-me.


Qual a nacionalidade deles?

Alemães-portugueses. O mais velho vive em Espanha, deu-me uma neta que já tem 14 anos.


Passados estes anos todos, que balanço faz do país, visto aqui do monte?

O José Augusto-França escreveu uma vez que eu continuava a ser um exilado. Acho que a minha obra demonstra que eu nunca estive exilado, a não ser física e politicamente. Ter vindo para Portugal tem a ver com razões particulares, essencialmente. Por exemplo, a saúde do meu filho mais novo foi determinante: o médico aconselhou que ele vivesse junto do mar. Chegou aqui e nunca mais teve aqueles ataques alérgicos.


Isto que é hoje Portugal é uma desilusão para si?

Em mim não há qualquer espécie de animosidade. Partilho o país tal como ele é hoje, embora às vezes me sinta um pouco isolado. Mas foi o lugar que escolhi. Já não tenho idade para fazer outro tipo de experiências, pegando na família e indo para outro lado. Sinto-me bem. Só tenho pena de não viver mais cem anos.


Esteve ligado a algum grupo político?

Ligações esporádicas. Conheci gente do cinema, como Fassbinder, do teatro, e estive presente em exposições para as quais era convidado e em que participava como sendo alemão. No tempo do “esconderijo” trabalhei num bar muito in, chamado Santa Barbara. Foi um tempo interessante. Ninguém sabia o que estava a fazer. Corriam boatos – por exemplo, de que eu estava amantizado com uma mulher muito rica. O Andy Warhhol esteve lá, também o Harry Beer, que fez um óptimo Luís II, do Syberberg.


Como se considera, politicamente?

Tenho-me por um homem de esquerda. Fui abordado uma vez para entrar para o PCP. Disse-lhes que tinha muita simpatia pela luta clandestina contra o sistema, mas que tinha dificuldade em articular dúvidas que tinha transportado nos últimos anos na minha estadia na Europa.


Esteve preso três meses em Caxias. Quando e com que fundamento?

Por ter assinado um papel enviado ao Presidente da República, Almirante Américo Tomás, acusando de crime o assassinato do pintor Dias Coelho [pela Pide, em 1961].


Um dia vim a Portugal com a família. No regresso, deixaram-me sadicamente chegar no comboio até à fronteira, em Vilar Formoso. Aí dizem-me: “O senhor tem que voltar para Lisboa. A sua senhora pode seguir, com o miúdo.” Assim, com este tom displicente. A minha mulher teve o bom senso de correr para um telefone a avisar alguns amigos em Lisboa e quando regressei lá estavam eles na estação. O Pide que ia a acompanhar-me ficou extremamente comprometido, não estava nada a gostar daquela coisa.


Foi para a António Maria Cardoso e daí?

Para Caxias. Fiquei 3 meses. Acusado de ter assinado o tal abaixo-assinado.


Esteve com quem, em Caxias?

Com gente ligada ao golpe de Beja. Havia lá camponeses, operários do Barreiro, corticeiros. Conheci ao nível humano a qualidade das pessoas. Os corticeiros eram impressionantes. O interesse deles pelas coisas! Criámos dentro da cadeia a “Universidade de Ciências Políticas”. O Alfredo Margarido falava de história política, acho; eu estabelecia um diálogo com eles sobre as funções que a arte pode ter no sentido político e revolucionário. Estava também lá o Edmundo Pedro, que acabou por ir parar ao PS. Independentemente das diferenças, estabeleceu-se entre nós todos um diálogo irmão, neste sentido: 'O inimigo não está entre nós; o inimigo está do outro lado’. Foi uma experiência muito singular. Primeiro passei um mês num curro. Não vi o sol durante esse tempo.


Por causa de ter assinado um papel...

Durante muito tempo tive uma reacção de esquecimento, não me estava a fazer nada bem [manter a recordação da experiência]. Só muito mais tarde contei esses episódios. Entre eles um, em que a malta toda se dependurou nas janelas a dizer uns para os outros que já se ouviam as lagartas dos tanques a andar em direcção a Caxias para nos libertarem. Era uma procissão do lado de lá do Tejo. Estavam a atirar foguetes e estes visionários já viam uma divisão blindada...


Que função atribuía à arte, nessas palestras? Atendendo à época, deveria ser um pouco mais libertadora, não?

Eu falava apoiando-me na minha própria experiência. Mas sem querer impor nenhum modelo que entrasse em contradição com o credo político deles – sobretudo o dos operários do Barreiro e dos corticeiros, que era tudo PC. Era um problema, falar-lhes da arte moderna, quando a União Soviética era contra ela. Não era, como não sou, um inimigo do PC, antes pelo contrário. Até cheguei a oferecer algumas coisas para que fossem vendidas como apoio. Mas lembro-me de ter dito ao Machadinho, que era uma figura carismática do PC de Évora: 'Olha que a Revolução também foi feita por artistas ligados à modernidade da arte. O Mayakovksi, o Kandinski o Jawletsky, o Malevsky decoraram comboios com painéis. Foi o próprio Lenine que mandou chamar todas as figuras interessantes, numa Rússia em ebulição’. Ele respondeu-me logo: 'Sabes, camarada: isso passava-se nas altas esferas da Revolução. Cá em baixo isso escapava-nos a nós, a arraia-miúda”.


Quando eu soube mais tarde o que Estaline fez a milhares e milhares de camponeses, por eles não serem “revolucionários”, isso fechou-me. Continuei a ter uma consciência de esquerda, mas não aceitei nada disso.


Faço-lhe então eu a pergunta que os camponeses, os operários, os corticeiros se puseram, há 40 anos: para que serve a arte?

Eles é que podiam responder-me: para nós não nos serve de nada, queremos pão, queremos terras para semear. Mas se vamos questionar todo o lado cultural do mundo, o melhor é irmos à procura de outro planeta.


Diferenças entre o Portugal dos anos 50 e este?

Há a diferença do 25 de Abril, que é uma marca essencial. As artes tiveram uma expansão extraordinária, dando possibilidades dentro do próprio país de se viver do objecto da arte, o que antes acontecia a raras excepções.


Um homem que vem de Munique e vai a Munique tantas vezes, como é que compara o campo artístico num e noutro lugares, hoje?

Há “évènements” de ordem cultural em vários sectores. Temos aqui os melhores grupos de jazz, vem este, vem aquele, há um intercâmbio circulatório de troca de imagens. Há coisas que me impressionam: como é possível haver tantas galerias, luxuosíssimas, de norte a sul? Quem as protege, do ponto de vista financeiro?


Artistas na actualidade, com 50 anos, mexeram com o interior deste país no que respeita às artes visuais. O Pedro Cabrita Reis é uma referência. O Julião Sarmento também. Havia ainda, mais na minha geração, o António Palolo, o José Escada, o João Vieira, vivo e sempre inquieto. Temos uma paleta de artistas diferentes e em várias faixas etárias que poderiam estar expostos em qualquer grande galeria do estrangeiro. Quem está a vender neste momento quadros por milhões? Os pintores de Leipzig de quem não gosto, confesso. Vieram da RDA, quando foi a queda do muro, instalaram-se do lado de cá, criaram uma imaginária escola de pintura à maneira dos anos 60 que chega a atingir o grotesco, o culto do feio, característica que acompanhou sempre a arte alemã. Apareceram em Miami e tudo quanto era quadro deles foi pago por milhões pelos japoneses e pelos chineses. Estes depois começam a encher o mercado com os seus próprios artistas apoiados nos estímulos dessa escola. Perfeitos a imitar.


Deixou de fazer gravura?

Deixei. O Bartolomeu Cid já me convidou varias vezes para voltar à gravura, na sua oficina de Tavira. Penso que teve a sua época em mim. Mas eu próprio entro em contradição: não ponho de parte a hipótese de ir até à oficina dele fazer um par de gravuras.


Para mim, o que acho curioso é que tivemos uma época em que contestávamos a obra de arte, contestávamos a maneira como ela era feita, contestávamos o seu posicionamento social e político e eu acabava por dizer a mim mesmo que a pintura de cavalete já não existia! A Arte vai para a rua. Voltei a fazer, alguns anos depois, serigrafia (três sobre Pessoa e uma baseada num quadro meu dos anos 70 “Universonauta e Pablo Picasso num diálogo sobre os problemas terrestres”). O que quis dizer já foi dito.


O que é que faz um grande artista?

É difícil. Há quadros de Van Gogh que na altura feriram susceptibilidades. Aquele estraçalhar as coisas era extremamente difícil e ofensivo. Muitas vezes o quadro pode estar mal no dimensionismo que cria.


Já escurece. Um golpe de vento ou uma bátega de água mais forte provocam um corte de electricidade. Algo tão frequente que o pintor, quando disso nos apercebermos mais daqui a pouco, terá logo à mão os números de telefone para o piquete da EDP e Catarina um arsenal de velas com que há-de alumiar o atelier, a sala de estar, a cozinha.

Deixaremos Catarina e os filhos no monte, para um jantar com Rogério Silva, um advogado, editor (Gente Singular editora) e escritor local (“Fonte Salgada”, prefácio muito elogioso de Teresa Rita Lopes). No restaurante Isidro, cujas paredes, decoradas sob forte inspiração cultural, nos transportam à “galerie Leonhart”, de Munique, onde expôs individualmente logo em 1965.

Antes de enfrentarmos de novo chuva e vento, a caminho de Olhão, desconcerta-nos quando lhe perguntamos o que ficou de 50 anos a pintar. “Alguns dos meus quadros estão em Munique. Muito bem guardados. Silenciosos, lá no atelier”.

Não os vendeu?

Não, não quis.


Para quê? Para olhar para eles?

Não. Mas achei que não os devia vender. Era um sacrilégio. Os quadros da exposição do Pessoa voltaram quase todos para Munique. A Fundação Gulbenkian comprou à partida o dos heterónimos, que é aquele que vai para todo o lado de assobio, como dizia o Vespeira e vendi mais tarde um ou outro. Mas devo vários, lá.


Explica-nos, já a seguir, que “sacrilégio” foi uma palavra mal escolhida. “Claro”, desenha e pinta para que a obra seja vista. “O que disse tem a ver comigo, com a minha tortura interior quanto à relação artista-quadro. É um desacerto meu, em relação a uma obra que vai parar a uma colecção, às vezes antes mesmo de ser exposta”. Distingue o coleccionador que compra porque gostou, do que manda comprar por telefone, sem ver. (Acabará por confessar que na base da decisão de guardar tantos quadros está também o desejo de os deixar aos seus, como herança. Nós não sabíamos: saberá o leitor que, apesar de contemplados na lei, os “royalties” da venda de um quadro, no mercado, quase nunca são pagos ao artista?).

Revela a existência de um projecto de se fazer um grande livro com toda a sua a obra desde os anos 50 e que está também pensado fazer uma retrospectiva total. “Penso ter tempo no planeta de a poder fazer”, ironiza.

Diz que “a tela virgem-inteira” ainda não lhe apareceu, 45 anos depois de ter dito a Mário Herique-Leiria que continuava a procurar a abstracção.

Responde finalmente, num contacto posterior à entrevista-entrevista, à pergunta sobre quem comanda no seu processo de construção de um quadro: “ A mão faz aquilo que eu ordenar. Desenho figura e cenário, ou cenário e figura. Existe um palco onde tudo acontece...”

Parece desconcertado, ele agora, quando lhe perguntamos, a finalizar o diálogo de quase um dia inteiro, que marca acha que a sua pintura vai deixar.

Pede que a pergunta seja repetida. “A marca?”. Ri-se durante uns bons segundos. “A-marca-que-a-minha-pintura-deixa...” Volta a gargalhar baixinho. Como se tivesse ouvido um grande disparate.

-Eu sei lá. Olhe, é o eu querer ser aprendiz de feiticeiro.


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