Conseguimos salvar o fim do mundo?

O Santuário de Nossa Senhora do Cabo já foi um dos maiores locais de peregrinação do país, palco de festas magníficas com teatro, ópera e touradas. Décadas de abandono trouxeram a decadência. Agora há um filme que tenta resgatá-lo de anos de impasse político.

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Não podemos imaginar o que terão pensado os primeiros homens que chegaram ao cabo Espichel. Aos seus olhos, surgia um planalto a estender-se em direcção ao céu e a cair despenhando-se sobre o mar. O mundo acabaria ali?

O Espichel é um cabo finisterra. No livro Nossa Senhora do Cabo — Um Culto nas Terras do Fim, Heitor Baptista Pato escreve que a povoação da Azóia parece ali “um dos últimos sítios habitados do mundo, e percebe-se bem que um antigo documento de 1366 afirme que aquelas terras do ermo, onde ainda perpassam as vozes de deuses velhos e roucos, ‘jazem em huu dos cabos do mundo e fora de todo o caminho’”.

Mas, mesmo “fora de todo o caminho”, atraiu os homens, que sentiram ali, de diferentes formas, a presença do sagrado. Os acidentes naturais, geográficos e geológicos foram sempre, diz ainda Heitor Pato, locais onde “residiam e se manifestavam divindades ou forças transcendentes de que nem sempre se conhecia o nome, embora não se duvidasse do seu poder: como disse o rei Evandro quando conduziu Eneias à rocha Tarpeia e ao Capitólio, aqui habitam deuses, mas não sabemos que deuses são…”.

Por aqui passaram dinossauros, devotos muçulmanos, aqui nasceram mitos, apareceram imagens misteriosas, os homens pasmaram perante pegadas sem explicação. Houve quem acreditasse que aqui ficava uma das portas da Atlântida. Vieram crentes seguindo Nossa Senhora e com as próprias mãos ergueram uma igreja, vieram depois reis e cantores de ópera, fizeram-se procissões riquíssimas, houve luxo e fausto e festa — até tudo cair numa desolação de fazer dó, como se os homens tivessem decidido esquecer o cabo para sempre. Ainda aqui viveram retornados das ex-colónias, mas com o tempo o património foi caindo. Depois todos se foram embora, e o cabo Espichel parecia finalmente mergulhado no silêncio.

Mas, a pouco e pouco, os homens voltaram. Como se não pudessem evitar. Vieram em procissões, e vieram em motos (há um encontro anual de motards). Atraídos pelo santuário e pelos braços agora emparedados dos antigos albergues para peregrinos, pelas ruínas da Casa da Ópera, pela pequena capela junto ao mar. Voltaram, enfeitiçados, a um cabo “fora de todo o caminho”.

Vieram pela natureza — a visível, no vento, no mar, na terra, e no céu, e também aquela que não é imediatamente visível, a vegetação em alguns casos única, os segredos escondidos nas grutas de difícil acesso, a imensa vida no fundo do mar, onde os peixes nadam entre restos de navios afundados. E pelas muitas histórias que o cabo guarda.

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Daniel Rocha

O fotógrafo Carlos Sargedas apaixonou-se pelo cabo Espichel há muitos anos, quando foi viver para Sesimbra. Primeiro chegou por terra, depois quis vê-lo a partir do ar. Durante muitos anos fotografou-o de todos os ângulos. E cada vez se conformava menos com o destino a que parecia condenado. Os últimos quatro anos, Carlos passou-os a filmar pendurado em rochas, de fato de mergulhador no fundo do mar, entrando em sítios onde nunca tinha imaginado, falando com toda a gente que lhe pudesse contar mais uma história.

O filme Cabo Espichel — Em Terras de Um Mundo Perdido, com música composta por Miguel Valadares, vai ser apresentado no dia 24 em Sesimbra, e será distribuído por instituições que possam ajudar a divulgá-lo publicamente, juntamente com um livro reunindo dezenas de depoimentos de especialistas.

Para contar esta história, Sargedas reuniu desde geólogos como Jacques Rey da Universidade de Toulouse, a directores de museus como Silvana Bessone, dos Coches, ou Miguel Magalhães Ramalho, do Museu Geológico, biólogos como Fernando Catarino ou António Teixeira, arqueólogos como Luís Ferreira, historiadores, padres, espeleólogos, investigadores, arquitectos. Comprou à BBC imagens de dinossauros a andar na terra há milhões de anos, como andaram no cabo Espichel, reconstituiu uma batalha naval em 3D e arranjou actores que ajudaram a relembrar diferentes momentos da história.

“O que eu queria era mostrar às pessoas aquilo que elas não conhecem”, conta, numa pausa do trabalho de tratamento de som do filme, no MVStudios, em Lisboa. “A minha ideia era, se vamos mergulhar, então vamos mergulhar o mais fundo possível.” O objectivo, conta o fotógrafo que é também o fundador da Arrábida Film Comission (organizadora do festival Finisterra e que tem como missão divulgar internacionalmente a região como cenário ideal para filmagens), é ter um filme que mostre o que acredita ser o extraordinário potencial do cabo para grandes produções internacionais de cinema (já aqui foram feitas algumas) e para outros projectos.

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Carlos Sargedas fez um curso de mergulho e, com a ajuda de espeleólogos, desceu às grutas, para filmar DR

As filmagens foram uma aventura. “Quando começámos a mergulhar, estive uma hora para conseguir meter a cabeça debaixo de água. E quando entrei numa gruta pensei: ‘Vou morrer aqui.’ Cheguei a ficar entalado pelo externo, 70 metros abaixo da terra, na escuridão. Entrei em pânico, mas depois consegui ir empurrando um bocadinho de cada vez, com a ponta dos pés… Mas em nenhum outro sítio eu teria estas emoções todas. Há coisas que já ninguém me consegue tirar.”

Meteu-se nisto porque acredita que pode ajudar o cabo Espichel e porque sentiu que não podia ficar de braços cruzados a assistir à degradação daquele espaço. A aventura, na realidade, começou antes do filme, em 2010, quando se lançou a organizar as comemorações dos 600 anos do Santuário do Cabo Espichel (se contarmos 1410 como a data em que terá sido encontrada a figura da Senhora do Cabo).

“Na altura perguntei à câmara o que ia fazer. A câmara disse que não tinha dinheiro. Achei aquilo tão nada que decidi fazer uma proposta. Desafiei uma série de fotógrafos profissionais e amadores a fazer exposições de fotografia, desde a subaquática à histórica. Enquanto as pessoas só virem a degradação e não olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”, explica. “Então, em oito meses, organizei 16 conferências, uma a cada 15 dias. As pessoas achavam que eu estava louco, que ninguém vinha à noite ao cabo, mas ainda me lembro, em Setembro, uma noite, chovia torrencialmente, e aquilo encheu.”

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"Enquanto as pessoas só virem a degradação e não olharem para o resto, não há forma de se dar valor a isto”, diz Carlos Sargedas Henrique Nascimento

Mas a grande loucura foi o final. Carlos queria encerrar com estrondo e pensou num concerto. “Pensei ‘vamos ter um palcozinho, convidar umas bandas e fazer alguma coisa’. Perguntei no Facebook quem alinhava e apareceu-me uma banda, depois outra — em 15 dias, tinha 16 bandas, a últimas das quais foram os UHF. E então digo: ‘Eh pá, o que é que vou fazer?’ Não tinha um cêntimo, não sabia organizar um concerto.”

Um amigo arranjou-lhe uns andaimes, o técnico da câmara desenhou o palco, os UHF avisaram que mesmo de borla tinham de ter condições técnicas para tocar, a polícia avisou que eram precisas licenças, a ASAE falou-lhe nas casas de banho — e a cada dia o cenário parecia mais assustador. Apesar disso, Carlos fez cartazes e anunciou a data: 11 de Setembro, para contrariar tudo de mau que estava associado a esse dia.

Pediu ajuda aos milhares de amigos no Facebook. “Apareceram cinco. A certa altura, eram cinco da manhã, na véspera do concerto, eu estava em cima do palco, com um vento terrível, a 12 metros de altura, a tentar pôr uma lona e entrei em hipotermia.” Valeu-lhe um amigo da Azóia que ouvira dizer “que estava um maluco no cabo Espichel e resolveu vir ver”, trouxe material de espeleologia e ajudou. “Fizemos um concerto memorável, juntámos quatro mil pessoas. Não fez vento, não havia uma brisa. A partir daí, as pessoas acreditaram.” Carlos chorava perdidamente, os UHF davam entrevistas a dizer que era preciso salvar o cabo, os políticos faziam promessas. O concerto “foi um momento mágico”.

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Bruno Simões Castanheira

Não é de estranhar: a dimensão mágica está presente desde sempre no cabo Espichel. Heitor Pato conta no seu livro que há até lendas que dizem que no dia do nascimento de Jesus foram registados estranhos fenómenos solares sobre a Península Ibérica e em particular sobre o cabo. Fala-se, em livros antigos, também da presença de tritões (deuses marinhos) e de sereias — que, segundo Pato, seriam na realidade lobos-marinhos.

Quanto aos dinossauros, não restam dúvidas de que uma ou mais manadas passaram por ali há uns 150 milhões de anos. As pegadas, identificadas nos anos de 1970, ficaram marcadas no que era então o fundo mole de uma zona de pântanos, entretanto transformado em rocha que, fracturada, hoje pode ser vista quase na vertical, em placas sobrepostas.

As rochas do cabo guardam também outras marcas, mais pequenas, que os homens não sabiam como interpretar, e daí terá nascido a lenda da Pedra da Mua, segundo a qual a Senhora do Cabo teria subido a arriba transportada por uma mula que deixara na rocha as marcas das patas.

Mas o nome Mua, ou Mu, liga-se também, nas teses do investigador Manuel Gandra, à lendária ilha-continente da Atlântida referida por Platão e desaparecida no oceano Atlântico cerca de 10 mil anos antes de Cristo e que seria igualmente associada ao nome Mu.

Ao longo dos tempos, foram encontrados nas grutas da região sinais de cultos vários — entre as muitas descobertas, inclui-se a de uma tábua de madeira com uma inscrição do Corão em árabe. Heitor Pato admite como provável que tenha havido nas proximidades um santuário islâmico e considera “legítimo supor-se já nessa época [da presença muçulmana em Portugal] a organização de peregrinações religiosas à finisterra sagrada da Arrábida”.

É possível que precisamente por causa do domínio muçulmano, os cristãos escondessem imagens sagradas. Mas, no caso da imagem da Senhora do Cabo, “quase tudo é mito ou fonte de dúvida”, segundo Heitor Pato. A lenda mais comum é a que conta que um velho de Alcabideche e uma velha da Caparica (unindo as duas margens do Tejo) sonharam com o aparecimento da Virgem no cabo e para aí se dirigiram, encontrando a imagem da Senhora em cima de um rochedo, o que levou depois à edificação nesse local, à beira dos penhascos, da pequena Ermida da Memória, onde a história dos dois velhos é contada em azulejos.

Costuma-se localizar a descoberta da imagem no ano de 1410 (há muitas teorias e todas impossíveis de comprovar), mas só mais tarde, já no século XVI, foi construída a igreja, de costas para o mar, da qual hoje nada resta. A actual igreja, da autoria do arquitecto régio João Antunes, foi mandada edificar em 1701 por D. Pedro II. O culto foi crescendo e as romarias foram-se tornando cada vez maiores e foram reforçadas pela ideia de que a Virgem garantia a protecção contra a peste e outras epidemias.

Veio de seguida o “esplendor de Setecentos”, com a imagem transportada em carros triunfais, espectáculos de teatro, fogo-de-artifício, corridas de touros, óperas compostas para a ocasião (daí a Casa da Ópera, situada atrás da ala norte da hospedaria) e a presença dos reis e da corte — D. José chegou a oferecer à Senhora “duas coroas de ouro cravejadas de diamantes e um ramo de jasmins e, em brilhantes, esmeraldas e rubis”.

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A actual igreja foi mandada edificar em 1701 por D. Pedro II Carlos Sargedas

Voltemos então à noite de 11 de Setembro de 2010, com Carlos Sargedas a chorar porque conseguiu organizar um megaconcerto e porque parece que algo de bom vai acontecer ao cabo Espichel. O que aconteceu depois disso? Nada.

O fotógrafo tem a teoria de que a decadência do cabo coincidiu com o fim da monarquia. “O culto aqui estava muito ligado à monarquia, e então aparece Fátima, que vem ‘destronar’ a Senhora do Cabo. A partir daí houve um abandono total.” Em 1995, a Confraria de Nossa Senhora do Cabo, proprietária do santuário, fez um acordo com o Estado para a recuperação do edificado (classificado como imóvel de interesse público desde 1950): por doação, o Ministério das Finanças ficou com a ala norte da hospedaria, com o objectivo de a transformar em pousada, enquanto a igreja e a ala sul continuam a pertencer à Confraria e os terrenos à Câmara de Sesimbra. O Estado comprometeu-se por seu lado a fazer obras de recuperação do conjunto.

Continuando as duas alas da hospedaria entaipadas e não tendo nenhum projecto de aproveitamento turístico ou outro surgido no local, o que Carlos Sargedas pergunta é porque é que o Estado não devolve a ala norte, dado que a separação das duas alas não permite nenhum projecto com viabilidade. Recebido por todos os grupos parlamentares, Carlos conseguiu apenas que os Verdes dessem algum seguimento ao caso, com perguntas ao Ministério das Finanças, que remeteu o caso para a Secretaria de Estado da Cultura, que alegou já terem sido feitas obras, nomeadamente na igreja, mas sublinhou que o santuário “não integra a lista de monumentos afecta à Direcção-Geral do Património Cultural, não sendo atribuição nem responsabilidade deste serviço assegurar a gestão e valorização deste conjunto ou executar as obras e intervenções de que necessite”.

A Câmara de Sesimbra, em resposta por email à Revista 2, fala numa “imensa teia burocrática” que tem impedido que o problema se resolva e acusa o Estado de nunca ter concretizado o compromisso que assumiu, situação que, diz, “é hoje um dos maiores entraves à recuperação do monumento”.

A autarquia “começou por desempenhar um papel de mediador entre as partes para tentar encontrar uma solução pela via institucional, mas uma vez que já se verificou que dificilmente o Estado avançará para a recuperação, tem-se empenhado em tomar posse da ala norte para, em colaboração com a Confraria, detentora da ala sul, avançar para a recuperação do espaço, com recurso à iniciativa privada ou por intermédio de fundos comunitários como tem acontecido com outro património do concelho”.

Embora não tenha conhecimento de momento de algum investidor interessado, a câmara argumenta que é precisamente para poder iniciar esses contactos que tem tentado tomar posse da ala norte, mas uma proposta na qual “solicita poderes para negociar com eventuais investidores”, feita em 2010 à Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças (DGTF), “nunca obteve resposta”.

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O fotógrafo acredita que o cabo pode servir de cenário para todas as histórias possíveis Carlos Sargedas

Como proprietária do terreno, vai em breve, com fundos do Proder, iniciar a recuperação da Mãe d’Água. Quanto ao resto, ainda no início deste ano, em nova reunião com a DGTF, “a autarquia voltou a insistir na necessidade de tomar posse da ala norte, fazendo uma proposta de permutas de terrenos”, mas, apesar de as propostas “terem sido bem recebidas pela tutela, “o facto é que se passaram meses e não houve qualquer resposta”.

Impasse, portanto. Carlos continua a lutar contra a frustração de ver que nada acontece. A sua grande aposta é o cinema. Fez o filme que esta semana vai apresentar (com apoio do Proder, mas muito dinheiro seu investido) precisamente para mostrar ao mundo como o cabo serve de cenário para todas as histórias possíveis, “dos Piratas das Caraíbas ao Indiana Jones, passando pelo Parque Jurássico”. Diz que os produtores que tem trazido a Portugal através da Arrábida Film Comission ficam encantados e que o país tem uma luz única para cinema. Só lamenta que não haja mais incentivos para atrair as grandes produções.

Desafiou, entretanto, um escritor para fazer um argumento que pretende vender a Hollywood, uma espécie de “Código da Vinci do cabo Espichel” e, “se tivesse dinheiro, ia tentar convencer o Tom Hanks” a participar. “Temos tudo aqui, batalhas navais, vikings, evasões francesas, túmulos, segredos, uma imagem de origem desconhecida, pegadas de dinossauros. Agora, o cinema faz o resto.”

Carlos Sargedas esteve enregelado em cima de um palco às cinco da manhã agarrado a uma lona, quando ninguém acreditava que ia conseguir montar um espectáculo; esteve entalado numa gruta a pensar que ia morrer; gastou o dinheiro que tinha e o que não tinha para fazer um filme sobre o cabo — e promete continuar a filmá-lo porque ficaram histórias por contar. Já venceu muitos medos. Não está a pensar desistir. O cabo onde certamente “habitam deuses” enfeitiçou-o para sempre.     

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