Como a arquitectura ajudou a pensar Portugal depois da revolução

O Centro Canadiano de Arquitectura juntou mestre e discípulo - Nuno Portas e Nuno Grande - numa entrevista em directo que deu a conhecer em Montreal não só o homem por detrás da história, como os antecedentes desse momento único que juntou arquitectura e revolução.

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Nuno Grande e Nuno Portas fotografados no Porto, em Março de 2012 Nelson Garrido

A encerrar um ciclo intenso de apresentações públicas e visitas guiadas pelo curador Delfim Sardo, o CCA promoveu na quinta-feira ao final da tarde um encontro com o arquitecto e urbanista Nuno Portas, “o homem sem o qual o Processo SAAL não teria existido”, assim o apresentou o director do centro canadiano, Mirko Zardini.

E foi numa espécie de entrevista em directo, moderada pelo arquitecto e professor Nuno Grande, que Nuno Portas explicou, na primeira pessoa, os caminhos que o levaram a escrever e a assinar em Agosto de 1974, na sua qualidade de secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, o despacho que fez nascer o Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), no âmbito do qual viria a ser construída habitação social nas cidades de Lisboa, Porto e Setúbal, e também no Algarve, entre 1974 e 1976.

Apresentando Portas como seu “mestre e professor”, Grande explicou que o título da sessão – SAAL: Arquitectura ou Revolução?, sobreposto a uma reprodução de um cartaz já icónico da associação de moradores do Bairro da Bouça, no Porto – ia beber à questão de fundo lançada por Le Corbusier sobre o papel que a arquitectura poderia ter na mudança da sociedade. Um mote que permitiu ao “entrevistado” esclarecer, desde logo, que a sua formação e inclinações sempre estiveram muito mais viradas para Itália, e para figuras como Alvar Aalto e Frank Lloyd Wright, do que para o modernista francês de origem suíça.

Durante mais de uma hora, e num diálogo permanentemente ilustrado com fotografias e outros documentos históricos, uma plateia de 40 pessoas, entre estudantes de arquitectura, turistas e membros da comunidade lusófona do Quebeque, ficou a saber que Portas, nascido em 1934, começou a interessar-se pelos problemas da habitação social logo nos anos 50, na companhia do seu amigo – de quem depois seria parceiro de atelier – Nuno Teotónio Pereira. “Nessa altura, não chegava que os arquitectos fossem artistas, era preciso que se envolvessem também socialmente, e fizessem investigação”, explicou Portas, que Nuno Grande apresentara como alguém que “acreditou que era possível reformar o país dentro do Estado Novo, e que a arquitectura podia ajudar a essa reforma”.

Depois de verificar que o Estado Novo não era reformável por dentro, Portas explicou que o Processo SAAL viria a começar em 1969, de certo modo, com um colóquio sobre política de habitação em Lisboa. Surgiu então o 25 de Abril e, com ele, as condições para o processo avançar, mesmo que nas circunstâncias “demasiado politizadas” – lembrou Grande – que são conhecidas e que levariam depois à sua interrupção brusca, em 1976, devido à burocracia institucionalizada no poder autárquico após as primeiras eleições democráticas.

“Mas o SAAL foi apenas uma das três vias” que então poderiam ter sido exploradas – lembrou Portas –, ao lado das cooperativas ou da aposta na recuperação das casas antigas e devolutas. Seria, no entanto, a via que deixou marcas mais fortes, não só no contexto da arquitectura portuguesa como na memória das populações – como agora os visitantes da exposição do CCA (O Processo SAAL: A habitação em Portugal de 1974 a 1976) podem verificar através do registo fílmico dos encontros promovidos com as populações que agora vivem nos bairros intervencionados na cidade do Porto, realizados paralelamente à apresentação da mostra no Museu de Serralves.

Dessa experiência histórica emergiu também, com grande força, o nome de Álvaro Siza, o arquitecto que viria a ganhar maior notoriedade internacional.

O CCA espera, de resto, poder completar a exposição dedicada ao SAAL – que vai decorrer até 4 de Outubro – com uma pequena mostra das obras de habitação social que Siza realizou depois, tanto em Berlim (o famoso “Bonjour Tristesse”) como em Haia.

“Só estamos à espera que cheguem a tempo os materiais dos arquivos que Siza já doou a CCA, mas que ainda estão no Porto”, explicou ao PÚBLICO Mirko Zardini sobre esse projecto. Também no final da exposição, o centro canadiano vai acrescentar aos seus arquivos os materiais que documentam o SAAL, abrindo-os assim à investigação de todos os interessados neste processo histórico.

Um debate de hoje
No final da “entrevista”, Phyllis Lambert, 88 anos, a arquitecta e filantropa canadiana que fundou o CCA – e que acompanhou com especial atenção todos os momentos destes primeiros dias da exposição SAAL –, perguntou a Portas por que razão essa experiência revolucionária única não deu os resultados esperados e não resolveu os problemas da habitação social.

O arquitecto e urbanista português falou da mudança do mundo e da economia, e explicou que, mesmo se continua a ser “uma questão bastante frágil, a habitação não é actualmente o problema n.º 1 que se vive em Portugal”, tendo sido suplantado pelo desemprego. “A principal questão, hoje, não é como fazer uma política de habitação social, mas como fazer uma política social da habitação que existe, e que se encontra devoluta”, sintetizou Nuno Grande.

Uma ideia que teve eco na plateia, onde se encontrava, por exemplo, uma francesa, Valérie Guillaume – que depois revelaria ao PÚBLICO ser a directora do Museu Carnavalet, em Paris. Desconhecendo a história do SAAL, disse ter-lhe especialmente interessado “a força e a dimensão social do projecto”, que encontrou “muito bem documentada e valorizada” na exposição do CCA. “É uma exposição exemplar sobre aquilo que é hoje a polémica sobre a questão da habitação social, ou a política social da habitação, como foi referido, e que está na ordem do dia na Europa mas também na América”, acrescenta Valérie Guillaume.

A mesma opinião tem outro visitante francês, Marc Piccardi, um professor de Toulouse: “A leitura desta revolução na arquitectura ajuda a perceber muitas das questões que a Europa hoje enfrenta”, diz. E um dos problemas, defende, é saber como viver em conjunto. "É por essa razão que a experiência que é documentada na exposição é muito moderna já que se liga aos movimentos associativos alternativos que hoje se desenvolvem em França e na Europa."

Também Diogo Burnay, um portugês que dirige a Faculdade de Arquitectura da Universidade de Dalhousie, em Halifax, vê na exposição “um modelo de que muitos arquitectos e estudantes estão agora à procura”.

“Num mundo em que o Estado Social atingiu os seus limites, há uma enorme preocupação quanto à renovação do papel do arquitecto”, nota Burnay, que dá o testemunho dos seus alunos em Halifax, vindos do Japão, da América do Sul ou de Berlim, que “dizem que querem fazer casas para os 99% da população, para quem precisa delas, e não mais hotéis, museu, casinos ou casas para ricos”.

No final de quase uma semana de intenso trabalho na montagem da exposição, Delfim Sardo fazia também um balanço optimista. “Foi interessante ver como ela correspondeu a um retomar da auto-estima, pela presença da arquitectura mas também da história recente de Portugal”, diz o comissário. E acredita que a iniciativa do CCA pode dar “uma atenção mais diversificada” à arquitectura portuguesa.

“Ela é conhecida a partir de três, quatro nomes de referência – à cabeça dos quais está evidentemente Siza, que é uma espécie de farol que vai à frente”, nota Sardo, acreditando que com a exposição SAAL, “a reboque da atenção sobre um período histórico, pode abrir-se uma atenção mais alargada sobre as práticas arquitectónicas contemporâneas e também sobre o muito bom nível da reflexão que em Portugal existe sobre o tema”.

O PÚBLICO viajou a convite do CCA e do Museu de Serralves

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