Crónicas da Cidade Grande começa e encerra em Marcelo Camelo. De um modo mais óbvio e literal quando se ouve Valsa Redonda, o delicado tema final em que o músico brasileiro espalha a sua voz rouca acabada de sair da cama, mas também na canção de abertura Cidade Grande (Canção de Acordar), cuja guitarra parece seguir enfeitiçada as tapeçarias acústicas dos discos a solo de Camelo (ouvir Passeando e, sobretudo, Saudade em Sou/Nós). Nada de mal nisso, naturalmente – seguir os melhores pode dar bom resultado, desde que se saiba o que fazer disso.
E Miguel Araújo sabe. Não haverá hoje muitas vozes autorais na música pop portuguesa capazes deste exercício frágil de juntar voz e guitarra em canções que se esquivam à vulgaridade, ao mesmo tempo que não tentam mascarar-se com extravagâncias de enganar qualquer olho e ouvido treinados. O rei não vai nu, portanto. Mas Miguel Araújo vai. Cada canção deste seu segundo álbum a solo – ele que se divide ainda entre os pouco impressionantes Os Azeitonas e as magníficas criações para obras alheias (a belíssima balada-cante alentejano O que É Feito Dela, para António Zambujo, o espantoso momento tradicional-pop de E Tu Gostavas de Mim, para Ana Moura) – é um precioso acrescento ao cancioneiro nacional. Mais até do que no anterior Cinco Dias e Meio.
Crónicas da Cidade Grande funciona como um puzzle que tanto se pode montar como uma colecção de histórias avulsas, de quem vai espreitando brevemente para pequenos quadros de um mosaico de vidas citadinas, mas que podemos também entender com facilidade como um encadeamento cronológico de uma mesma personagem a atravessar a sua existência. É estar atento e as pistas para a infância (a magnífica José, cordas e sopros bem mandados a remeter para primeiros passos, ou a impecável citação dos sopros de Os Marretas em Contamina-me), a vida amorosa, a paternidade, o envelhecimento e a morte.
Tudo encostado aos melhores exemplos de escrita de canções, seja o tom Springsteen/Costello de Dona Laura, ou as duas baladas na cauda de Paul McCartney (Cartório e Recantiga). Ou ainda uma Canção de Salomão deliciosa nas voltas melódicas em que se enredava Elliott Smith. Brincar aos melhores, como escrevíamos acima, é perigoso. É preciso ter mão certeira e graciosidade para extrair daí um disco tão aparentemente simples e cativante quando este Crónicas da Cidade Grande.
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