Centenário de Julio Cortázar celebrado em todo o mundo

A grande exposição Los Otros Cielos, que se inaugura nesta terça-feira no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, é a mais ambiciosa das muitas iniciativas que estão a assinalar, um pouco por todo o mundo, o centenário do escritor argentino Julio Cortázar, autor de Histórias de Cronópios e de Famas (1962) e do romance experimental Rayuela (1963).

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Julio Cortázar com a sua gata Franelle, em Paris, uma das fotografias da exposição Autor anónimo/Fundo Aurora Berna Centro Galego Artes da Imaxe
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Julio Cortázar em 1943 Autor anónimo
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Julio Cortázar na Unesco em Paris, 1959 Jose Gilabert
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Julio Cortázar em 1967 Sara Facio
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Julio Cortázar no seu escritório em Paris em 1981 Andre GIRARD
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Fotografado por Carol Dunlop na auto-estrada Paris-Marselha em 1982 Carol Dunlop
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Julio Cortázar em 1983 Carlos Bosch

Organizada em 12 núcleos temáticos, a exposição que se inaugura nesta terça-feira no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) de Buenos Aires –  no dia em que se cumprem exactamente cem anos sobre o nascimento do escritor em Ixelles, nos arredores  de Bruxelas – está organizada de modo a tanto poder ser vista por uma ordem preestabelecida como de forma aleatória. Opção que decerto agradaria ao autor de Rayuela – o monumental romance experimental de Cortázar (edição portuguesa da Cavalo de Ferro, com o título O Jogo do Mundo – Rayuela), que também pode ser percorrido de vários modos, cada um deles correspondendo a uma obra diferente. Se se começar na primeira página, há um livro que acaba no capítulo 56, mas também é possível iniciar-se a leitura no capítulo 73 e, a partir daí, seguir-se as indicações deixadas no final de cada capítulo para se saber o que se deve ler a seguir.

O curador de Los Otros Cielos, Juan Becerra, explica que a exposição pretendeu corresponder à versatilidade do próprio Cortázar. “Foi um contista, um romancista, um viajante, um agitador político, um crítico de arte, um poeta”, disse Becerra à agência EFE, explicando que tentou “reconstruir essa figura cheia de matizes e que continua a cativar as novas gerações de leitores”.

Becerra vê em Cortázar “um escritor que se move como um aventureiro, que tem algo de Che Guevara e de Tintin”, e tentou que a exposição reflectisse essa sua característica: “Se há uma ideia geral que possa reunir numa só órbita os planetas que compõem Los Otros Cielos, é a ideia de inquietude.”

Complementando esta exposição, o MNBA inaugura também nesta terça-feira uma segunda mostra, intitulada Los Fotógrafos: Ventanas [janelas] a Julio Cortázar, que dá a ver o escritor através do olhar de fotógrafos profissionais, como o espanhol Antonio Gálvez ou as argentinas Sara Facio e Alicia D’Amico.

O programa de comemorações do centenário daquele a quem o ficcionista mexicano Carlos Fuentes, sublinhando o carácter revolucionário da sua obra, chamou “o Simón Bolívar do romance” incluirá um congresso internacional na Biblioteca Nacional argentina, Lecturas y Relecturas de Julio Cortázar, com núcleos temáticos que não esquecerão as muitas paixões de Cortázar, do cinema ao jazz e ao boxe, e ainda o programa RompeCortázar, no Palais de Glace (um edifício de Buenos Aires que reproduz o estilo francês da Belle Époque), que reúne trabalhos de escritores e artistas visuais a partir de oito histórias breves do autor de Bestiário (1951) e de outros volumes de contos, como As Armas Secretas (1959) ou Queremos Tanto a Glenda (1980). Os dois últimos acabaram  de ser lançados em Portugal pela Cavalo de Ferro.

Também a Fundação José Saramago não quis deixar passar em claro o centenário de Cortázar, e dedica-lhe o número de Agosto da revista Blimunda (que pode ser descarregada gratuitamente), publicando um texto de Carlos Fuentes sobre o amigo argentino, um artigo de Dulce María Zuñiga, a coordenadora da cátedra Julio Cortázar na universidade mexicana de Guadalajara, uma entrevista com o catalão Carles Álvarez Garriga, um dos grandes especialistas na obra de Cortázar e organizador do livro póstumo Papéis Inesperados (2009), e um texto do jornalista brasileiro Ricardio Viel sobre os cem anos do “maior cronópio de todos” (os amigos e admiradores de Cortázar chamavam-lhe afectuosamente Cronópio-Mor).

E foi precisamente nas Histórias de Cronópios e de Famas que o cineasta argentino Julio Ludueña se inspirou para o seu filme de animação homónimo, que se estreia na quinta-feira em Buenos Aires.

Julio & Carol

Já em fase de conclusão está também o documentário Julio & Carol, do canadiano Tobin Darlymple, que investigou a história de amor de Cortázar e da sua segunda mulher, a escritora, activista e fotógrafa americana Carol Dunlop, com quem o escritor viveu em Paris. Darlymple recolheu um grande número de testemunhos e teve a sorte de conseguir encontrar a velha furgoneta Volkswagen Kombi em que Cortázar e Carol fizeram a viagem pela auto-estrada Paris-Marselha que está na origem do livro que o casal escreveria a meias: Los Autonautas de la Cosmopista (1982).

Dunlop morreu em Novembro de 1982, deixando Cortázar mergulhado numa profunda depressão. O escritor viria a morrer a 12 de Fevereiro de 1984, vitimado, segundo a certidão de óbito, por uma leucemia. As causas das mortes de ambos continuam, no entanto, a gerar controvérsia. A escritora uruguaia Cristina Peri Rossi, que foi amiga do casal, afirma que Cortázar foi acidentalmente infectado com o vírus da sida (numa altura em que a doença era ainda quase desconhecida) durante uma transfusão de sangue, tendo depois contagiado a mulher.

Nascido casualmente perto de Bruxelas – o pai trabalhava na embaixada  da Argentina na Bélgica – a 26 de Agosto de 1914, quando a cidade, em plena primeira guerra, estava ocupada pelos alemães, Julio Cortázar viveu ainda na Suíça e em Barcelona antes de a família regressar à Argentina, quando tinha quatro anos. O pai abandonou a família logo a seguir, de modo que foi educado pela mãe, uma grande leitora, que lhe dava a ler Júlio Verne, Victor Hugo ou Edgar Allan Poe.

Cortázar foi professor de literatura e tradutor na Argentina, tendo começado a publicar contos em revistas nos anos 1930 e 40. Os seus primeiros livros, os poemas em prosa de Presencia (1938) e a peça Los Reyes (1949, foram assinados com um curioso pseudónimo: Julio Denis. Descontente com o regime de Perón, decide radicar-se em Paris em 1951, no mesmo ano em que edita Bestiário. Embora tenha viajado muito, Paris será a sua cidade até ao final da vida.

Em 1953 casou-se com a tradutora argentina Aurora Bernárdez, de quem se separaria em 1967 para ir viver com a lituana Ugné Karvelis, com quem nunca chegou a casar-se. Em 1981, casou-se com a já referida Carol Dunlop.

A obra de Julio Cortázar revolucionou a ficção contemporânea e garantiu-lhe, na literatura argentina do século XX, um lugar só comparável ao de Jorge Luis Borges. Mas se os talentos literários de ambos foram equiparáveis, o autor de Rayuela distinguia-se bastante de Borges nas simpatias políticas, tendo apoiado os sandinistas na Nicarágua, a revolução cubana ou o Governo de Salvador Allende no Chile.  

Bastante traduzida e editada em Portugal, primeiro pela Estampa, depois por várias editoras, e mais recentemente pela Cavalo de Ferro, a obra de Cortázar inclui alguns romances, com destaque para o monumental Rayuela, e vários livros de contos. Uma das suas histórias, As Babas do Diabo, inspirou o filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni. Está recolhida em As Armas Secretas, que inclui ainda um conto dedicado aos últimos días do músico de jazz Charlie Parker.

Como ficcionista é considerado um dos fundadores do chamado boom da literatura latino-americana, e tem sido aproximado do realismo mágico, ainda que livros como Histórias de Cronópios e de Famas o aproximem mais do surrealismo. A influência de Joyce e de outros modernistas europeus e norte-americanos é também mais notória em Cortázar do que na generalidade dos grandes romancistas latino-americanos da sua geração.

Escreveu ainda vários livros de poesia, peças de teatro, ensaios e outros textos mais difíceis de catalogar. Devem-se-lhe ainda traduções espanholas da obra completa de Edgar Allan Poe, do Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, e das Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.

 

 

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