O Real Combo Lisbonense traz Carmen Miranda para a música portuguesa: temos baile
A identidade portuguesa dessa metralhadora sonora de turbante de frutas nunca foi amplamente reclamada ou celebrada em Portugal. O Real Combo Lisbonense traz Carmen Miranda para a música portuguesa. Temos baile.
É melhor fechar a porta agora?”, pergunta alguém.
“Uma praça de touros quer-se de porta aberta”, responde João Paulo Feliciano.
Ninguém suspeitaria que aqui dentro se está a gravar um disco, muito menos um disco de canções de Carmen Miranda. Três homens às voltas com um tema que nem sequer é um samba, mas uma marcha mariachi bem-humorada, Touradas em Madri – daí a referência tauromáquica. A música e as vozes de base já foram gravadas e dois dos membros do Real Combo Lisbonense gravam agora vozes adicionais: onomatopeias como “pararatim bum bum bum” e “olé”.
É uma terça-feira de Julho, 28 graus que sobreaqueceram o estúdio da Pataca Discos, uma sauna, mais quente do que na rua. Rui Alves está em tronco nu frente ao microfone, João Paulo Feliciano transpira na régie envidraçada, dedo em riste, a esgrimir o ar como um condutor de orquestra. Rui Alves e Ian Mucznik, que estão a fazer coros para a canção, entram na régie para ouvir o resultado. “Os olés já estão a ficar bons”, diz João Paulo Feliciano. “Tem de ser mais. Tem de ser uma plateia”, diz Rui Alves.
Em Junho de 1939, quando Carmen Miranda se estreia na Broadway, dando início à sua fase americana, o almirante Gago Coutinho – herói da aviação portuguesa que, com Sacadura Cabral, realizou a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, de Lisboa ao Rio de Janeiro, em 1922 – foi recebido pela cantora brasileira. Ao saber que ela tinha nascido em Portugal, perguntou-lhe: “Portanto, minha filha, porque é que não canta um fado ou um vira, em vez de sambas? E em vez de O que é que a baiana tem?, por que é que não canta O que é que a m’nina do Minho tem?”
Este encontro é contado em Carmen, do jornalista e escritor brasileiro Ruy Castro, considerada a biografia definitiva sobre a cantora. Foi esse livro que no Natal de 2012 veio parar às mãos de João Paulo Feliciano, uma prenda de uma amiga vinda do Rio de Janeiro, ainda por cima autografada pelo autor. “João Paulo, meu irmãozinho em Carmen”, escreveu Ruy Castro.
Carmen Miranda, a metralhadora sonora de sorriso voraz e turbante de frutas, nasceu em 1909 numa aldeia de Marco de Canavezes, de onde partiu aos dez meses de idade para o Brasil, num barco a vapor, sem nunca mais ter voltado a Portugal. A sua identidade portuguesa nunca foi amplamente reclamada ou celebrada em Portugal – aliás, é o Brasil que continua a alimentá-la (Caetano Veloso, com a sua canção-tributo Marco de Canaveses, e os turistas brasileiros que vão a Várzea de Ovelha ver a casa de pedra onde Carmen nasceu). Num pequeno texto escrito para o disco que é lançado na segunda-feira,, Saudade de Você – Real Combo Lisbonense às voltas com Carmen Miranda, Ruy Castro escreve que “dos três países em que se deu a sua biografia” – Portugal, Brasil e Estados Unidos, “onde se consagrou internacionalmente” – “o que menos beneficiou de sua existência foi... Portugal”.
Mas Carmen “não precisa de voltar a ser portuguesa”, avisa Ruy Castro, porque “nunca deixou de o ser”. Algumas das canções de Saudade de Você mostram isso mesmo: Absolutamente soa como uma marcha dos santos populares. “Se fores dá-la a ouvir a uns senhores aí fora, vão achar que isto é português”, resume João Paulo Feliciano, 51 anos, ideólogo e fundador da big band que é o Real Combo Lisbonense. No disco tanto se canta em português do Brasil como em português-português, e nada disso soa forçado. “Dada a forma como a Carmen Miranda tratava a língua e as pronúncias e brincava com isso tudo, acho natural que neste disco se cante em português e em brasileiro”, diz João Paulo Feliciano.
Como Ruy Castro nota na sua biografia, o Rio em que Carmen viveu era “tão português quanto a terra de onde tinha saído – talvez mais. Numa população de cerca de um milhão, o Rio tinha perto de 200 mil portugueses – muito mais do que o Porto, cuja população era de 150 mil”.
Nos anos 30, quando Carmen começa a sua carreira como cantora, “o brasileiro tinha coisas mais parecidas com o português ao nível da pronúncia do que agora”, diz João Paulo Feliciano. “O que faz com que seja possível cantar músicas da Carmen Miranda em português com muita naturalidade. É quase como uma matriz portuguesa que está lá. Não seria possível fazer isso com a Gal Costa ou com a Maria Bethânia.” Além disso, a música de Carnaval nessa época era dominada pelas marchinhas, muito mais do que pelos sambas. E as marchinhas, nota João Paulo, “são mais próximas do universo português das bandas filarmónicas e da marcha militar”.
Mas apesar de o disco pôr em evidência essa “matriz portuguesa”, ele não se fica por aí. O universo musical é bastante aberto, sem nunca ameaçar a coerência. Paris é um swing francês, Saudade de você tem o balanço de uma morna de Cabo Verde, quem conhecer Na baixa do sapateiro nas versões de João Gilberto ou Caetano não está preparado para os sopros à la Lounge Lizards que o Real Combo Lisbonense injectou na canção (e, no entanto, quem for ouvir o original gravado por Carmen Miranda irá perceber que já lá estava tudo).
Saudade de Você permite descobrir uma Carmen Miranda que não conhecemos, duplamente: graças a essa amplitude musical que actualiza o seu reportório, sem se desviar dele; e porque dispensa temas mais óbvios – como O que é que a baiana tem? ou South american way – para se concentrar numa Carmen Miranda menos conhecida.
Uma epifania
Em Junho deste ano, o Real Combo Lisbonense deu um concerto único no anfiteatro ao ar livre do jardim da Gulbenkian dedicado a Carmen Miranda. O alinhamento está pendurado no estúdio da Pataca Discos em Xabregas, junto a posters da cantora. O disco foi gravado depois do espectáculo, um processo inverso ao que é habitual. Mergulhar no universo de Carmen Miranda não foi simples nem imediato para uma super-banda com membros que vêm sobretudo do rock. “Ninguém vem do samba. Isso era um dos desafios e das dúvidas à partida para este projecto”, resume João Paulo Feliciano. O Real Combo Lisbonense nasceu em 2009 como um grupo de baile apostado em recuperar o património perdido da música portuguesa dos anos 50 e 60, à semelhança do que a Orquestra Imperial vinha fazendo nos últimos anos no Brasil. O primeiro EP da banda foi editado em 2009, com temas que tinham sido gravados por Simone de Oliveira e Mário Simões. Em 2011 começaram a gravar um segundo disco que nunca chegou a ser terminado – e, entretanto, a biografia de Ruy Castro vai parar às mãos de João Paulo Feliciano, que pesquisa a música da cantora no iTunes e tem uma pequena epifania: gravar Carmen. A procura de uma abordagem própria demorou um ano, com ensaios regulares da banda quase todas as semanas.
Dias depois do concerto na Gulbenkian, a banda gravou o disco em dois dias no estúdio da Pataca. A rapidez do processo teve a ver com o trabalho que estava para trás de uma banda que já tinha ensaiado muito para apresentar-se ao vivo. “Existia uma memória. E sobretudo uma memória afectiva porque o concerto da Gulbenkian tinha corrido bem e estava fresco”, explica João Paulo Feliciano. “Era importante não perder essa espontaneidade.”
A gravação foi feita com cerca de 20 a 24 microfones em estúdio, o que é inédito na história da Pataca Discos. Isso sem contar com os overdubs, gravados depois. Alguns temas chegam quase a ter 40 pistas de som – pura filigrana musical. “O disco é bem complicado. A música não é simples. Tem muitos pormenores, muitos elementos, e esses elementos têm de jogar todos. O que é complicado é fazer com que essa riqueza das vozes, das percussões, dos acompanhamentos, do que entra e do que sai, não se atrapalhem umas às outras”, diz João Paulo Feliciano. “Há muitas variáveis, muitas hipóteses de fazer aquilo soar de maneira diferente.”
Outros membros do Real Combo Lisbonense chegam entretanto para ajudar nos coros e nas percussões adicionais: João Pinheiro, baterista (também baterista dos Diabo na Cruz) e David Santos, baixista. Para a canção Na baixa do sapateiro, gravam-se três takes: um só de palmas, outro com afoxé (cabaça) e mais um com flexatone e brinquinho da Madeira (bonecos de madeira com castanholas às costas) a serem tocados ao mesmo tempo.
Se há um comboio no disco, não demos por ele. “Todos os discos da Pataca têm um comboio.” O estúdio fica mesmo ao lado da linha ferroviária que liga Santa Apolónia à estação do Oriente. “Já é uma marca: o número de comboios que cada música tem.”
Mas não este comboio que está a passar agora.
“Pára. É um comboio bué da alto”, diz Rui Alves para a régie.
Despersonificar
Saudade de Você não é derivativo nem uma imitação de Carmen Miranda. As vozes femininas são três: Ana Brandão (também actriz), Joana Campelo (também actriz) e Margarida Campelo (também instrumentista ligada ao jazz). As duas últimas só muito recentemente passaram a integrar o Real Combo Lisbonense. “O facto de serem três cantoras reforça uma coisa importante para mim – autonomizar este trabalho como uma coisa do Real Combo Lisbonense”, diz João Paulo Feliciano. “Não é uma recriação da Carmen Miranda, não é um music-hall da Carmen Miranda, não encarna a Carmen Miranda. O facto de serem três despersonifica porque não podes dizer quem faz de Carmen Miranda. Todas elas fazem.”
Em Agosto, João Paulo Feliciano levou as gravações para para o Alvito, no Alentejo, para fazer as misturas finais com o engenheiro de som Luís Nunes (cujo alter-ego musical é Walter Benjamin), que comandara a gravação. Depois de quatro anos em Londres, Luís Nunes, que se parece com um jovem Joe Cocker, fixou-se no Alvito, onde os pais têm uma casa, e montou um estúdio no sótão (com uma rede de descanso suspensa atrás da mesa de mistura). É aí que ele e João Paulo estão a trabalhar nas misturas finais do disco, a janela aberta para a Praça da República, engalanada com flores de papel de seda e um pequeno palco, resíduos de uma festa popular recente. Ouvindo Saudade de Você é fácil imaginar o Real Combo Lisbonense a dar um baile naquele mesmo lugar.
Luís Nunes tem uma visão. “Este disco faz-me lembrar aqueles discos gravados na Capitol. Os discos do Frank Sinatra gravados com orquestra. Era isso que eu estava a imaginar. Um disco clássico. É como se tivéssemos ido todos num avião até L.A. e gravado lá.” E, virando-se para João Paulo: “Não achas?”
Mas apesar de tudo soar bem enquanto faziam as misturas no Alvito, quando voltou para Lisboa com elas e as mostrou ao irmão Mário, que também integra o Real Combo Lisbonense (os créditos que se lhe são atribuídos no disco incluem “ouvidos e sentido crítico”), aperceberam-se que as canções pareciam ter “uma película por cima”. “O Luís usa mais reverb [reverberação, para criar a ilusão de espaço na música] do que eu. Os sopros com mais reverb parece uma coisa mais orquestral. Quando eu lhe dizia para pôr menos reverb, ele dizia: ‘Mas isso soa a corneta, tipo baile, e menos Capitol.’ Mas o som precisa disso”, explica João Paulo Feliciano. As misturas finais acabaram por ser feitas em Setembro no estúdio da Pataca, com Tiago de Sousa. “É como no futebol. A equipa é a mesma. Mas de vez em quando mudas o ponta de lança”, nota João Paulo. “Aconteceu com o Tiago no disco dos You Can’t Win Charlie Brown [outra banda da família Pataca Discos]. O Tiago ligou ao Luís: ‘É a paga!’” Além disso, nem todo o trabalho de edição e limpeza feito no Alvito se perdeu, diz.
Como é que alguém que é sobretudo artista plástico e vem do rock conceptual – João Paulo Feliciano fez parte dos Tina and The Top Ten e tocou com os Sonic Youth – se entusiasma com um património tão clássico? “Apesar da minha prática musical ser nesse território, o meu consumo e experiência musical nunca se resumiu a isso. Desde miúdos que eu e o irmão íamos aos bailes populares nas Caldas da Rainha”, diz João Paulo Feliciano. “O primeiro grupo em que toquei era um conjunto de baile, Nova Geração. Tinha 16 anos. Mas claro que já tinha a minha guitarra eléctrica. O que eu curtia era tocar solos e pôr amplificadores muito alto e tocar rock.”
O Real Combo Lisbonense apresenta o disco ao vivo no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a 13 de Dezembro, e no Teatro Ibérico em Lisboa, a 17 e 18. Teremos baile.