Cadeiras, biombos e outros móveis: os actores voláteis da encenação do Estado Novo
O respeito e disciplina que a todos se impõe é a nova exposição do Mude, em Lisboa, que passa em revista o trabalho da Comissão para a Aquisição de Mobiliário da ditadura para os edifícios do Estado.
O respeito e a disciplina que a todos se impõe: Mobiliário para edifícios públicos em Portugal (1934-1974), que desde sexta-feira ocupa o segundo piso do Museu do Design e da Moda (Mude) resulta de uma investigação de João Paulo Martins, membro do Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design da Faculdade de Arquitectura de Lisboa que teve o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana , bem como um empurrão de João Vieira, coordenador do Sistema de Informação para o Património (Sipa) do chamado Arquivo do Forte de Sacavém, o maior e mais importante arquivo de património arquitectónico e urbanístico do país. É que em 1940, o Governo de Oliveira Salazar criou a Comissão para a Aquisição de Mobiliário (CAM), que durante quatro décadas centralizou compras mas também desenhou uma paisagem em todos os espaços ligados ao Estado – dos programas para edifícios pensados por inteiro, do exterior aos interiores, às lógicas uniformizadoras de sectores como os da saúde ou educação. A frase que dá o mote à exposição sai dos relatórios de actividades da CAM.
Estamos a falar dos cadeirões do Tribunal da Relação do Porto, dos móveis do Hospital Sobral Cid de Coimbra ou da Junta de Energia Nuclear de Sacavém, mas também das messes militares, da Companhia das Lezírias, da Biblioteca Nacional, da Cinemateca Portuguesa e das Pousadas de Portugal. E, claro, da Assembleia da República ou do Palácio de São Bento, entre muitos outros. Apesar de estes móveis serem, como outros emergidos nos últimos anos noutras exposições do museu, de galerias ou leilões, reconhecíveis e parte dos quotidianos geracionais, aqui estão mais de cem peças que, na sua maioria, nunca entraram num museu. É claro que há peças de Daciano da Costa, de José Espinho, mas muita é produção quase totalmente desconhecida de fabricantes, arquitectos e designers portugueses que assim se acrescentam à história da disciplina em Portugal.
Desde sexta-feira e até 2 de Novembro estão no Mude objectos vividos e propositadamente expostos com as marcas do seu uso por milhares de funcionários públicos e utentes de serviços, do cadeirão imponente do Instituto Superior Técnico, esventrado em palha e fibras, à cadeira médica do Hospital dos Capuchos que foi enxertada com dois pedaços de metal para reforçar a sua estrutura de aço tubular.
Alinhados com muito respeitinho, com design gráfico de Nuno Caniça e design de exposição dos Pedrita – que acrescentaram uma camada extra à mostra com uma entrada cheia de plantas, árvores de borracha e outras espécies de interior usadas para humanizar e personalizar, a pouco e pouco, estes espaços uniformizados – são o resultado de uma história de garimpo. Poucos estavam em uso, a maior parte “invariavelmente nas arrecadações”, como descreve João Paulo Martins na apresentação aos jornalistas. Apesar de se tratar de peças que contam uma história (algumas das quais o museu gostaria que permanecessem no seu acervo) e de um punhado delas estar já em espaços museológicos de instituições como a Presidência da República, este é “património muito próximo”, como descreve a directora do Mude, Bárbara Coutinho. E como “a vida dos móveis é muito volátil”, diz João Paulo Martins, havia que perceber que programas ideológicos estavam por trás deles. E à sua frente.
Surpresas
João Paulo Martins foi vasculhar ao Forte de Sacavém mas também à Torre do Tombo ou ao Arquivo Fotográfico da Gulbenkian, além do périplo nacional pelos edifícios do poder. O resultado, espera, é um convite a “reflectir sobre o nosso passado, mas também sobre o nosso presente – como é que a nossa relação com o Estado é ainda estabelecida pelos móveis”. Mais adiante nascerá um livro a partir do seu projecto, Móveis Modernos, assim intitulado porque era o período moderno que pensava que ia encontrar.
“Foi surpreendente encontrar tanta produção rústica, historicista, de réplicas, porque elas diluem-se, sobretudo as réplicas, de uma maneira subcutânea. Estão lá e quase acreditamos que são móveis genuínos, do passado, e afinal são tudo reinvenções dos anos 1940, 50,60”, diz ao PÚBLICO sobre a variedade de abordagens que os diferentes programas acabaram por permitir.
A exposição está dividida em quatro núcleos e se o primeiro nos ilude com a Atracção internacionalista dos projectistas, com a vontade de “renovar o país” que cortava com as formas tradicionais e abria os braços ao modernismo, ao betão, ao aço tubular numa diversidade de abrodagens, o segundo pesa-nos com Um Estado conservador e totalitário em que entram as palhinhas, o mobiliário rústico e as réplicas dos móveis históricos, mas também as representações de autoridade às costas – das cadeiras, que são altas e imponentes. “Tudo formas de encenar o poder.” Sente-se “o fechamento, a imposição de uma autoridade com um programa ideológico muito explícito e determinado - e que não se limita àquela década de 1940, prolonga-se no tempo”.
Mas João Paulo Martins também não esperava, admite, deparar-se com o arrojo de alguns projectos. “Esta modernidade, estes anos 1950 com estes programas sistemáticos tão desenvolvidos”, aponta sobre uma década em que se nota alguma abertura, num panorama em que “estes arquitectos tomaram estes pretextos e oportunidades para fazer aqui uma festa de projecto”. No terceiro núcleo, Com o movimento moderno, entra em cena uma nova geração de autores, arquitectos e designers, que tenta trazer o modernismo dos anos 1950, as fórmicas, os pés cónicos, as geometrias nórdicas para o rectângulo atlântico. Norberto Corrêa, Jorge Tavela de Sousa, José Luís Amorim, José Andresen e, claro, Daciano, Espinho e a fábrica Olaio. Andresen, por exemplo, equipa a Pousada de Valença com cadeiras rústicas, poltronas onduladas de veludo a imitar a Lady de Marco Zanuso, e outros assentos absolutamente modernos.
Nos anos 1960/70, a abertura é mais pronunciada e nota-se um “novo olhar para o panorama internacional – os nórdicos, os brasileiros, os americanos, novas geografias e já não só a Europa Central” que embebem o trabalho dos portugueses. Tal “também representa uma certa diluição das redes do poder – nos anos 1940 e princípios de 50 temos um controlo muito apertado sobre todos os processos burocráticos”.
Estas diferentes atitudes convivem ao longo das décadas, sempre sob o olhar da CAM e com algum voluntarismo e de alguns dos que desenharam este cenário do que era o Estado nas suas ramificações diárias. “Havia pareceres deselegantes, recusas” da CAM, mas os arquitectos e desenhadores “acreditavam no que estavam a fazer e no seu serviço público”, pelo que tinham também a “vontade de impor a sua perspectiva sobre o mundo, porque era isso que lhes era pedido: que encenassem esses espaços com o sentido do seu tempo e da sua contemporaneidade”, responde João Paulo Martins ao PÚBLICO sobre se havia risco em algumas tomadas de posição dos autores.
Móveis, móveis por todo o lado, e no fim (e quarto núcleo) um reencontro com as memórias e gestos, com os Móveis-tipo que equiparam o ensino, a saúde, os serviços – da madeira ao metal, são fantasmas de esperas, de lições, de consultas.
Notícia corrigida às 08h50 de 30 de Julho: inserido o subtítulo e identificado o autor do design gráfico da exposição