Botto heterónimo de Pessoa?
Botto e a homossexualidade: Zetho Cunha Gonçalves organizou uma impecável antologia com as peças mais importantes de uma polémica erótico-social.
Em 1922 e 1923, Pessoa saiu em defesa do seu amigo António Botto. Publicou-lhe uma segunda edição das Canções e escreveu manifestos em defesa da sua confessa homossexualidade. Num deles, elevou as justificações ao nível de uma estética com raízes na Grécia clássica, sublinhando que a arte se justificava pelo seu alcance estético e não pela adopção de morais de valor fugaz e burguês – “Quantas obras de Arte não se teriam de banir se nela se exigisse a mais burguesa moralidade!” Noutra ocasião, Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa, pôs em causa essa mesma argumentação – fundada na estética e na referência aos gregos – para afirmar que era pela própria frontalidade da acção, por uma espécie de virilidade homossexual, que Botto tinha de ser respeitado.
A defesa de Botto por parte de Pessoa pertence a uma engrenagem polémica que reúne outros intervenientes (e que se prolongou no tempo, até pelo menos 1926). Um movimento de estudantes católicos, com Pedro Teotónio Pereira, futuro embaixador e putativo substituto de Salazar, a reivindicar uma nova Inquisição, ou seja, a censura e a queima de livros e folhetos impressos como os de Botto. Uma muito previsível intervenção do jornalista Álvaro Maia, em nome da moral e do catolicismo mais ortodoxo, contra a frouxidão de Botto. O desenvolto contra-ataque de Raul Leal, a colocar-se ao lado de Pessoa e de Botto, chamando a Maia “torto e feio”, e atacando “esses pulhas, esses theotónios de merda”. Leal, talvez o mais irónico e gozão, elevou a homossexualidade a criação divina – o que deve ter irritado supinamente os católicos! A apreensão pelo Governo Civil de Lisboa do livro de Botto, bem como a Sodoma divinizada (1923) de Raul Leal e a Decadência: poemas (1923) de Judith Teixeira. E, ainda, o artigo de 1926 da autoria de Marcello Caetano, que ressuscitou o embate entre pedrastas e católicos, para festejar esse grande momento quando “o Leal e o Botto e a sr.ª Judith Teixeira foram todos para o Governo Civil onde, sem escolha, se procedeu à cremação daquela papelada imunda, que empestava a cidade”.
De toda esta polémica, Zetho Cunha Gonçalves organizou uma impecável antologia, onde incluiu as peças mais importantes, antecedendo-as de um estudo introdutório em que dá quase sempre o seu a seu dono. Por exemplo, a defesa de Botto a cargo de Pessoa foi interpretada por Jorge de Sena num quadro de heteronímia. Ou seja, ao defender o amigo, Pessoa dava sentido à sua própria pulsão homossexual, logo, Botto terá sido para Pessoa uma das suas identidades. Também José Barreto é reconhecido nos seus pioneiros estudos acerca desta polémica. Aliás, os conhecimentos que este último tem acumulado acerca do tempo de Pessoa suspeito serem uma autêntica mina, ainda por explorar. Não deixa Zetho Gonçalves de pregar pelo menos uma farpa, quando põe a descoberto que, na edição da Gallimard-Pléiade das obras de Pessoa, o editor confundiu alhos com bugalhos, apresentando como sendo de Pessoa a tradução para francês de poemas de Botto feita por aquele. Suspeito, também, que a omissão da cuidadosa edição das Canções de Botto por Jerónimo Pizarro e Nuno Ribeiro (Guimarães, 2010), seja deliberada e sinal de uma qualquer trica entre os seus estudiosos... E é pena pois nela constam apêndices da autoria de Pessoa e outros materiais que completam os que agora se publicam.
Esta antologia sugere três tipos de inquérito. O primeiro diz respeito ao sentido das clivagens que polémicas e casos como este suscitaram. Entre a tolerância progressista de Pessoa e as posições moralistas de católicos, tais como Álvaro Maia, Teotónio Pereira e Marcello Caetano, será possível ver uma divisão entre progressistas e apoiantes de modelos autoritários suportados por estruturas eclesiásticas? Uma questão desta natureza pode até parecer anacrónica, formulada por quem já conhece o modo como evoluíram alguns dos intervenientes na polémica. De qualquer modo, estamos longe de poder pensar que os modernistas alinharam todos com Botto e Pessoa e os que abriram as portas ao fascismo opuseram-se-lhes em bloco. Júlio Dantas e outros escritores republicanos de então manifestaram também uma enorme tolerância em relação a Botto. A respeito das mesmas clivagens e do modo nem sempre claro como uma série de casos se politizou, importaria comparar a mesma polémica com outros acontecimentos de grande repercussão, precisamente pelos mesmos anos. Tenho em mente, as discussões na opinião pública do crime de Serrazes (1920-1922), o dos Malafaias, em que interveio o célebre advogado Cunha e Costa, bem como o caso da organização de uma nova orquestra pelo maestro Francisco de Lacerda, em que se comprometeu António Sérgio e a revista Homens livres (1923). Nesta última publicação, Sérgio procurou, aliás, gerar um consenso entre integralistas e seareiros – pelo menos em relação a questões essenciais como as da “decadência física e apatia moral”.
Uma segunda linha de investigação, próxima da primeira, pode ser formulada com mais clareza: católicos e fascistas organizavam-se já, no início da década de 1920, para se demarcarem dos frouxos e denunciarem os homossexuais que por aí andavam a coberto da criação artística e literária modernista? Creio que não, embora pouco se saiba acerca da polícia dos costumes em Portugal, cujas acções boçais não eram com certeza suscitadas por grandes ideias ou valores intelectuais. Tal como não acredito que – apesar dos constantes apelos à virilidade do ditador e à energia mais ou menos militarizada dos seus apoiantes – os horrores oficiais à homossexualidade da parte do Estado Novo e da Igreja tivessem sido sempre traduzidos em repressão. Pelo contrário, em 1946, José Osório de Oliveira publicou duas cartas que lhe foram dirigidas por Mário de Andrade, numa das revistas publicadas pelo Secretariado Nacional de Propaganda. Nelas o autor de Macunaíma (1928) assumiu a sua homossexualidade, revelando a sua “feminilidade” e celebrando, no “amor do todo”, a sensualidade do seu corpo em comunhão com os índios da Amazónia. Andrade justificava-se com a sobreposição de identidades que em si coexistam, um desdobramento do seu próprio eu ou de uma heteronímia que os portugueses associam logo a Pessoa, mas cujas origens bebem em outras fontes. As cartas foram pois publicadas num órgão da cultura oficial do Estado Novo, por alguém que não sendo homossexual tinha fortes preocupações estéticas, diga-se de passagem.
Última questão: se esta antologia está organizada em função de um contexto português, o que fica por conhecer melhor é o modo como determinados temas e modelos de comportamento, incluindo as relações homossexuais, são uma consequência directa de uma circulação internacional de ideias e de práticas. O que equivale a perguntar se a homossexualidade promovida e autorizada por círculos modernistas e artísticos do primeiro quartel do século XX não será sobretudo consequência de um cosmopolitismo da tolerância. E a onda de repressão que lhe corresponde não será ela também influenciada por tendências internacionais, do eugenismo ao anti-semitismo e ao nacionalismo militarista mais exclusivo? Estamos longe de conseguir responder a questões desta natureza, pois apesar dos inúmeros materiais à nossa disposição, pouco sabemos da circulação concreta de autores tais como Blaise de Cendrars e outros. E dificilmente se pode aceitar reproduzir nas nossas próprias análises o horror ao que vinha de fora. Este, na expressão bem reaccionária e nacionalista de Álvaro Maia, acabou por se traduzir na referência a “todas as porcarias vindas da estranja no domínio da literatura, da filosofia, da arte, da política [que] tiveram o aplauso dos nossos pseudo-pensadores e Portugal andou, jogado por todos os judeus do pensamento, ao sabor das flutuações da moda” (Vento sobre a charneca, 1944, p. 110).
Enfim, para que possa ser possível alargar o questionário das questões em causa teremos sempre de partir de dossiers e de estudos como este que Zetho Cunha Gonçalves organizou. E bem.