As várias voltas da realidade
Uma aldeia, os animais, as estações do ano. E um rapaz que procura rapariga. Temos homem. Isto é, temos personagem de cinema. Volta à Terra, de João Pedro Plácido: as várias voltas da realidade quando estimulada pela ficção.
Eis Volta à Terra, uma primeira realização - ele, que se coloca ao serviço dos outros de forma eclética como director de fotografia, garante que será a única, porque lhe falta energia para suspender tudo e se envolver. O filme é um retrato de grupo com Uz em fundo: meia centena de pessoas, os trabalhos do campo, as festas, as estações, os animais (as aldeias têm esta forma arquetípica no cinema: uma estrada única que atravessa a povoação, animais a cruzarem o ecrã, a neve, lembram-se de As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino?)
Volta à Terra é um híbrido: nem é, afinal, retrato de grupo, porque o que se evidencia, em sucessivas visões, é a demanda pícara de uma personagem, Daniel. Que vai sendo exponenciada com os traços e as roupas da ficção – há-de vir a história do chapéu no final.
São as chamadas “ficções do real”, o híbrido é já o nosso mundo de espectadores. Mas talvez esteja aqui a apontar para um sentido qualquer esta (re)descoberta de um país para além da troika, como quem volta à terra. Lembram-se daquele plano, em Campo de Flamingos sem Flamingos (2013), de André Príncipe, com a TV a falar no ministro das Finanças e o filme a iniciar-se aí como gesto de dissidência e partir em direcção a outro olhar, fora da caixa do telejornal? Pois há um plano se não igual pelo menos a apontar para a mesma direcção, mas agora é o Presidente da República na TV, em Volta à Terra.
“Sim, queria marcar o contraste entre um Portugal em crise e um lugar onde a crise não existe. É um lugar que tem a aparência de pobreza mas que é de uma enorme riqueza a nível humano”.
Daniel, por exemplo: figura exuberante, mas que parece estar em paz com o mundo com que pragueja, procura rapariga. Falou-se de As Quatro Voltas. João Pedro Plácido conhece, mas diz que é o tipo de filme que não queria fazer – para encurtar razões, a forma como Frammartino prescindiu de uma hierarquização figurativa, tratando o humano com a mesma importância que o mineral, sabotaria a eficácia e a abrangência de Volta à Terra, que deseja público mais vasto. Por isso o realizador também diz que Volta à Terra não quer ser “um Wang Bing” - o chinês que venceu a competição internacional do DocLisboa 2014, com Father and Sons, no ano em que João Pedro venceu a Competição Portuguesa. Nem quer ser “um [Raymond] Depardon”. “Por mais que goste desses realizadores, gosto mais de E a Vida Continua, do Kiarostami” - filme que viu aos 16 anos -, “desse registo de documentário e de ficção em que não há austeridade cinematográfica que impeça o espectador de aceder ao filme”.
Uma ficção que é a realidade
Temos homem, então: Daniel. Que não tem mulher. O filme foi-se focando nele na montagem. João Pedro diz ter capacidade para “não sacralizar o material”, por mais querido que lhe seja, porque são anos e anos, como director de fotografia, a fazer “planos bonitos” que não cabem nas versões finais – por exemplo, todo um lado do filme que seria muito Être et Avoir (a neblina, a neve e a escola, como no filme de Nicolas Philibert, de 2002) foi posto de lado para não colocar problemas de “fluidez”.
Temos personagem. “Daniel é assim, embora as ferramentas cinematográficas ao dispor permitam exponenciar essa personalidade, o que a torna personagem de cinema”, diz João Pedro. Que, sem querer desvendar as regras do pacto estabelecido com as pessoas de Uz que conhece de anos e anos de regresso à terra para férias (conta que os primeiros tempos de rodagem foram passados à espera que fosse interiorizada a regra de não se olhar para a câmara, de se ignorar a máquina de cinema), aceita fazer o outing da sua metodologia de rodagem.
Por exemplo, conta que a certa altura, verificando que a harmonia de Uz era contrária à possibilidade de conflito, o que criava “um problema real” porque o simples passar das estações não fazia “avançar a narrativa” e “sem conflito o filme não funcionava”, se virou para Daniel em busca de solução: “partir da realidade para criar uma ficção que é a realidade”. O problema de Daniel, real, era que não tinha rapariga. Tratou-se de impor essa realidade ao cinema. “Há aí uma rapariga que conheças, Daniel?”. Havia. E foram, ele e a co-argumentista Laurence Ferreira Barbosa, bater à porta dela, para a convocar para o filme.
O que se passa entre eles, rapaz e rapariga, segundo o realizador, a forma, por exemplo, como o humor de Daniel salta e contagia a rapariga, é a reiteração, com câmara ali para apanhar o que acontecia, e mesmo com diálogos escritos, de uma história antiga que (lhes) acontece desde que se conheceram em pequenos - para saber se boy gets girl é preciso ver o filme. Este estímulo da ficção à realidade desagua num plano que vibra com qualquer coisa de paroxístico: Daniel rodeado de animais, telemóvel na mão, chapéu como adereço, conquistador fora de tempo ou já fora de campo mas entregue à sua verdade. O realizador que a princípio salientava que o chapéu já andava por outros planos do filme, concede depois que sim, que desde a escolha do local, da hora, da tarefa, do conteúdo do telefonema que Daniel faz (à rapariga), e das suas respostas, “tudo foi planeado, construído” para que fosse um momento forte. “Creio até que anteriormente nunca tinha filmado o Daniel de forma tão próxima, num plano tão fechado, que sem ser grande plano acaba por ter a força do mesmo”. Não tem a ver com falsidade. É o apogeu de uma verdade.