As raízes de Portugal em tempo de crise
As diferenças e singularidades de uma cultura que se impõe defender e que se deve valorizar.
Leite de Vasconcelos, em meu entender, não é nem um poeta, nem um escritor. Há um abismo entre fazer versos e criar poesia. E há outro abismo entre redigir prosa e ser escritor. Leite de Vasconcelos publicou livros de versos que constituem, apenas, testemunhos autobiográficos, fragmentos de estados afetivos, memórias da Pátria e da pequena pátria, inventário de princípios e virtudes que orientaram a sua vida e a sua obra.
Quanto à prosa de Leite de Vasconcelo,s é a escrita clara e concisa de um investigador, modelo de texto vernáculo, próprio do mestre das Lições de Filologia Portuguesa. É a linguagem simples e correta que o Peregrino do Saber utiliza para se pronunciar em vários domínios da cultura erudita e da cultura popular.
Ao reler a revista Sudoeste de Almada Negreiros e Dario Martins (para completar um trabalho acerca de Almada Negreiros e os Painéis), voltei a refletir nesta advertência de Fernando Pessoa que tanto se aplica à avaliação dos poetas como à dos escritores: “O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir."
Se Leite de Vasconcelos não foi, na aceção rigorosa, um poeta ou um escritor, permaneceu ao longo da vida um companheiro solícito, um amigo dileto e até um mestre respeitado de escritores e de poetas. Todos e cada um, mesmo com divergências ideológicas, tinham uma ideia de Portugal e uma ideia para Portugal. Alguns exemplos: quando Leite de Vasconcelos fazia estudos universitários no Porto conheceu Antero de Quental. Descreveu, no Mês de Sonho, as relações pessoais e culturais que tiveram. Era o Porto erudito e republicano (com um projeto para a cidade e para a região do Norte) de Basílio Teles e Sampaio Bruno; o Porto de Camilo, já sem paixão por Ana Plácido, a caminho dos editores e oftalmologistas. Era o Porto boémio e literário de Teixeira Gomes, que procurava concluir o curso na Escola Médico Cirúrgica; o Porto do pintor Marques de Oliveira, que retratou Teixeira Gomes e o mar e o areal da Póvoa de Varzim. Era o Porto laborioso, recetivo às solicitações da cultura e ao sentido da universalidade. Deu alguns dos médicos que lecionaram no Curso Superior de Letras e na sua transformação em Faculdade de Letras de Lisboa: Queiroz Veloso, Leite de Vasconcelos e João Barreira. Vão juntar-se a outros médicos de outras proveniências: Silva Teles, Francisco Reis Santos e Matos Romão.
Fixemo-nos agora nos discípulos: Afonso Lopes Vieira orgulhava-se de ter recebido, na Biblioteca Nacional, lições particulares de Leite de Vasconcelos. Com ele aprofundara o conhecimento da língua portuguesa e o entendimento das raízes de Portugal. De um Portugal lido e refletido, visto, ouvido e saboreado, ao contrário de outros contemporâneos de Lopes Vieira que buscaram um perfil nacionalista e político extraído dos paradigmas de Maurras e de Barrés.
Vitorino Nemésio não foi aluno de Leite de Vasconcelos mas ainda privou com ele. Considerava-se seu discípulo. Analisou a obra, o homem e o mestre que classificou "um interpelador de esfinges". Entre tantos, recordo mais dois escritores que não passaram pelas aulas de Leite de Vasconcelos mas que se consideravam seus discípulos – Aquilino Ribeiro e João de Araújo Correia. A dedicatória de Aquilino no pórtico do livro Avós dos Nossos Avós, à memória de Leite de Vasconcelos destaca a amplitude de uma obra que recuperou o percurso de um povo, através dos séculos.
O ciclo efetuado na Assembleia da República tornou-se extensivo a colaboradores de Leite de Vasconcelos, os que preconizaram os conhecimentos e métodos da época e adotados pelo mestre e os que transpuseram o mestre e a sua obra introduzindo perspetivas inovadoras: Manuel Heleno, Luís Chaves; Paulo e Alda Soromenho Orlando Ribeiro e Manuel Viegas Guerreiro. Este restrito núcleo é suscetível de se alargar a muitos outros alunos (ou meros leitores) que se distribuíram em cidades e vilas de norte a sul do País, na Madeira, nos Açores, nos territórios de Africa e do Oriente. Até no Brasil, sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Citar é sempre omitir, mas avanço os nomes de Rodrigues Lapa, João da Silva Correia, Hernâni Cidade, José Saraiva, José Pereira Tavares, Fidelino de Figueiredo, António do Prado Coelho, Pedro Serra, José Henriques Barata, Cortes Rodrigues. Cada qual – a seu modo e na esfera das suas possibilidades e recursos – a desempenhar funções em universidades, liceus, escolas técnicas, museus e bibliotecas, deu projeção e sequência ao magistério de Leite de Vasconcelos na arqueologia, na etnografia, na etnologia, na filologia, na numismática, na antropologia...
Já alvitrei na Academia das Ciência,s na sessão comemorativa dos 150 anos de Leite de Vasconcelos, que se deveria proceder a nova edição dos dois volumes de De Terra em Terra, incluindo o Mês de Sonho e alguns dispersos nos Opúsculos. (De 28 de Maio a fins de Junho de 1924, completaram-se, agora, 90 anos, houve uma viagem de intelectuais aos Açores, uma visita de ilha em ilha, num contexto politico complexo, já estudado numa tese universitária de Luiz de Menezes. Sem se aperceber dos intuitos para derrubar a I República e, em especial, o Partido Democrático, Leite de Vasconcelos foi integrado nesse grupo e reuniu notas de viagem no livro Mês de Sonho.)
Os possíveis três ou quartos volumes com o título genérico De Terra em Terra requerem, contudo, novo tratamento gráfico e iconográfico, um índice de cidades, vilas, aldeias, lugares, grandes e pequenos tesouros; e outro índice de nomes de pessoas, de assuntos, de ofícios, de instituições, da religião, de formas de culto, de alfaias litúrgicas, da alimentação, de vestuário e acessórios, de médicos, cirurgiões e de curandeiros, de remédios e de mezinhas. E mais, muito mais...
De tudo o que pode promover os vários patrimónios que constituem o património material e imaterial. Tal como ensinou Leite de Vasconcelos indo ao encontro dos fatores de identidade de Portugal e dos portugueses. Dos vínculos que, sobretudo em tempos de crise, resistem às ameaças de massificação que procura anular as diferenças e singularidades de uma cultura que se impõe defender e se deve valorizar.
Jornalista e investigador