A característica mais nefasta do ambiente literário em Portugal é a atomização. Não é um fenómeno recente, mas ganhou nos últimos tempos o aspecto de uma doença. A atomização consiste na criação de universos separados, cada um deles encerrado numa lógica interna e pouco permeável a um diálogo com o seu exterior. Uma sociologia da cultura mostraria certamente que isso se dá por um reflexo de defesa, acentuado pela experiência aguda de uma condição muito minoritária. Mas, por outro lado, esse fechamento é uma resposta à exclusão. Este é um daqueles comportamentos em que se verifica uma fundamental reversibilidade entre o lugar do que é condicionado e o lugar daquele que condiciona. Na prática, o que se passa é uma territorialização, comandada por afinidades electivas e posições pragmáticas, que não possibilita — e ainda menos promove — cruzamentos, diálogos e debates. A primeira manifestação sintomática desta doença foram os prémios literários. Tirando uma ou outra excepção, eles ficaram à mercê de aparelhos institucionais e poderes informais, até pelo facto de ter diminuído progressivamente a possibilidade de renovar as pessoas que circulam pelos diversos júris. O universo dos premiáveis e dos jurados que os escolhem foi encolhendo drasticamente. Por outro lado, as editoras tendem a funcionar como clubes, a formar “famílias” cujos membros se protegem reciprocamente e se sentem vinculados a uma pequena comunidade. Nalguns casos — poucos — é uma comunidade de pertença a um projecto que se justifica por critérios literários; mas na maior parte dos casos a regra que domina é o puro corporativismo, o pragmatismo editorial e as estratégias de difusão. Nestas circunstâncias, as clivagens foram-se acentuando, a comunicação entre os vários pequenos mundos desse mundo maior foi-se interrompendo, até ao ponto de muitas vezes parecer que há várias literaturas estrangeiras (estrangeiras umas para as outras), contemporaneamente e no interior do mesmo espaço nacional. A legitimação, que outrora cabia ao conjunto alargado dos pares, ficou entregue a pequenos grupos, cada um dos quais com poder e prestígio limitados a um espaço específico. Assim, os campos de batalha da guerra literária acabam por ser pequenos territórios com fronteiras bem marcadas. Exemplifiquemos, para que se compreenda melhor: entre um romancista como Almeida Faria (para não falar de uma Agustina Bessa-Luís) e os novos romancistas surgidos na última década há um hiato que não é apenas o da idade; é como se não fossem pares no interior do mesmo sistema literário e jamais se encontrassem. A crítica literária nos jornais e a lógica mediática da difusão dos livros acentuaram a tendência para a atomização ao privilegiarem tudo o que é novo e ao estimularem a visão da literatura (ou melhor, da edição) como território de caça do cool hunter. Este é o mapa das divisões internas, das províncias territoriais que, por não estarem ligadas por vasos comunicantes, não dão sequer lugar a diálogos, quanto mais aos debates e polémicas que marcaram a literatura moderna. Assim, tudo se passa como uma conversa de dimensão provincial, para não dizer provinciana. Para este estado de coisas, muitas circunstâncias contribuem, e seria errado e injusto atribuir aos escritores uma exclusiva responsabilidade. Mas a verdade é que poucos são os que oferecem alguma resistência e não colaboram activamente nesta atomização irresponsável. Por vezes, até parece que não são conscientes do modo de funcionamento do sistema onde têm cada vez menos autonomia.
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