As diferentes intensidades de uma fisionomia

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Há uma sensação intrigante que surge a propósito do trabalho de Jorge Molder e que se relaciona com a pergunta sobre a razão que leva o artista a fotografar-se a si mesmo, de forma persistente e sistemática, pelo menos desde os anos de 1980. Não são intrigantes propriamente as questões da figuração e da representação de si mesmo, antes a percepção imediata que qualquer espectador do trabalho de Molder possui de não se tratar de uma obra sobre si-mesmo ou repleta de notas biográficas e testemunhos vivenciais inscritos nas fotografias e que são imagens que contêm uma estranheza originária. Fundamentalmente, são imagens formadas na distância que se estabelece entre o sujeito e a sua própria imagem. Por isso Jorge Molder tem repetido insistentemente que o seu trabalho não são auto-retratos, mas auto-representações. Esta diferença é essencial e não um pormenor: inscreve a obra do artista num horizonte de problemas em que é o conhecimento do outro, a alteridade e o mundo lá fora que o movem.

As duas exposições (uma no Chiado, outra no Museu da Electricidade da EDP) que inaugurou em Lisboa, no âmbito do Grande Prémio EDP que lhe foi atribuído em 2010, dão conta das tensões essenciais da obra de um dos grandes nomes da arte portuguesa contemporânea. A primeira, patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu do Chiado até 23 de Fevereiro, tem o titulo Rei, Capitão, Soldado, Ladrão, não tem um âmbito histórico ou revisionista, nem é uma exposição antológica que ensaie a fixação de sentidos e períodos na obra deste artista. Pelo contrário: trata-se de uma exposição que abre as imagens de Molder não só a inúmeras possibilidades de experiência e interpretação, mas sobretudo a uma importante contaminação pelo tempo presente. Um deixar-se tocar pelo presente provocado pelo modo como o artista contrapõe trabalhos antigos com trabalhos novos e, desta maneira, mostra como toda a obra está em constante processo de transformação, reconfiguração e afinação. Talvez por isso a exposição no Chiado se desenvolva com um arco temporal entre 1989 e 2012. Como Molder confessou ao Ípsilon: “Não me apetece nada voltar atrás, interessa-me fazer coisas novas. E depois não me é confortável a ideia de representatividade que uma exposição antológica implica e em que se vai buscar certas imagens a séries e as retiramos do contexto. Prefiro mostrar séries inteiras em confronto. Mas dadas as características deste prémio, era esta exposição que era preciso fazer. Gostei muito de fazer este trabalho com o João Pinharanda, que a comissariou. Mas este meu não querer fazer uma grande retrospectiva não se deve só à minha incapacidade de olhar para o passado, mas por uma grande preguiça.”

E o sucesso desta exposição está em não estabelecer cronologia ou hipótese de desenvolvimento da obra de Molder, mas promover a percepção exacta de sucessões fisionómicas organizadas não enquanto representações, mas, como diz Pinharanda, enquanto presenças. A constatação de se tratarem de muitos rostos para um mesmo modelo aponta uma possível direcção destas obras em que coexistem terror e prazer, sedução e arrepio. Um mesmo modelo que a cada nova imagem se transforma num ser diferente. Com este movimento não se trata tanto de assumir uma personagem mas de figurar diferentes intensidades conquistadas através da fisionomia. E é este peculiar exercício fisionómico que estabelece a afinidade e familiaridade entre as diferentes séries e os seus diferentes tempos.

“Interessa-me a possibilidade de produzir alterações na fisionomia. Acho curioso essas modificações que as pinturas e fotografias podem fazer ao rosto. E isto são coisas que no meu trabalho já vêem de trás. Nesta nova série [refere-se a A Escala de Mohs apresentada no Museu da Electricidade] as coisas são mais intensas e chamam muitas coisas que tinha acumulado.”

Sublinhe-se que este reconhecimento de um território comum para todo o trabalho não é uma questão identitária. Não é porque o modelo permanece o mesmo que o trabalho é uno; a unidade advém do permanente interesse do artista pela máscara, pela personagem, pela duplicação. O interesse pela personagem, como afirma Molder, é mais um interesse pela máscara do que pelos processos de composição de um sujeito numa personagem. A máscara, como mostra Jean-Luc Nancy num ensaio sobre o fotógrafo, está entre a apresentação de si mesmo e a dissimulação, a conformidade e a transformação. O modo como esta ambiguidade se espelha num rosto é a matéria que Molder trabalha a cada fotografia. Mesmo não estando em causa a sua própria representação, o tempo não deixa de se fazer sentir e, por isso, há buracos e rupturas, fissuras que deixam o tempo transparecer. São “buracos nas meias do tempo através dos quais se vê o tempo que passou.” E este é o aspecto paradoxal desta obra: mesmo não se tratando de auto-representações, o artista não tem como evitar perceber o modo como o tempo passa por si e o marca. Por um lado, a figura que surge nas imagens não é ele, mas padece do mesmo tempo, das mesmas afecções e expressa isso nas suas diferentes fisionomias.



O mágico, o agente secreto e o palhaço

Em toda a obra de Molder a ideia de personagem é um dado permanente e tem no agente secreto, no mágico e no palhaço as figuras de eleição. A exposição do Chiado é exemplar no modo como espelha as diferentes transfigurações do trabalho do artista: por um lado, a ideia de incorporação de uma personagem e, por outro, a figuração de si mesmo através de um outro. O operador deste movimento é a máscara. Para Molder a questão da máscara é a questão pela qual tantos artistas se interessaram pela figura do palhaço: “Picasso, Hopper, Bonard, Cindy Sherman, e muitos outros que percorrem muitos momentos da história da arte... Para mim este interesse do mundo da arte pelos palhaços tem que ver com a relação entre o rosto e a máscara e a distância entre eles. O palhaço é a anulação da máscara. Ou seja, máscara e pessoa coincidem. Uma coincidência não evidente e que surge através de diferentes artifícios: maquilhagem, roupa, etc.”

Este interesse não se deve exclusivamente a essa ideia de transformação, mas também ao modo como o palhaço é simultaneamente figura de riso e de morte.

“As figuras dos palhaços são curiosas porque deveriam provocar o riso e muitas vezes assustam mais as crianças que as divertem. Um leque que vai do riso até qualquer coisa muito mortífera. Pense-se na gargalhada do Joker [Batman] e no filme de Visconti Morte em Veneza em que um grupo de palhaços entra num restaurante e se ri e é um episódio medonho.” Com as peripécias e disparates dos palhaços Molder mostra a maneira como eles conduzem a um contacto com a mortalidade, como são figuras no limite do riso: “São figuras do riso trágico e ameaçador. O palhaço serve-me para perceber que o riso é mortal: eu rebento a rir. O palhaço serve-me como figura limite de muitas coisas: da forma, de significado, dissolução da forma. O palhaço é uma figura multiusos que vai desde o mágico, ao Joker ou o James Bond, etc.”

Figuras aparentemente distantes e até contrárias, mas que se encontram no facto de todas possuírem uma enorme conformidade. O mágico, o palhaço e o agente secreto são figuras esquemáticas, paradigmáticas, conformes a um modelo estabelecido. Todos possuem características (o vestuário ou a maquilhagem) que lhes permitem ser reconhecidos — a sua máscara. Mas depois todos possuem uma identidade e individualidade que é importante procurar e identificar. São fisionomias móveis e transitórias, por oposição à ideia de estátua e de permanência perene. Contraste este muito visível nos trabalhos Pinocchio (2009), em que surge uma personagem (ou máscara) de madeira e gesso, petrificada e de olhar vítreo, e na nova série A Escala de Mohs (2012-2013), onde à dureza da pedra (invocada pelo título da série que remete para a escala desenvolvida pelo mineralogista Mohs para medir a dureza dos minerais) se prefere a mobilidade e instabilidade do rosto humano tal como se apresenta e se esconde numa máscara. E este jogo entre a exposição e o escondimento é uma das tensões figurativas mais importantes na obra de Jorge Molder e que estas exposições apresentam de modo exemplar.

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