Alface preta

Tema recorrente - quando agentes culturais de origem africana se cruzam, a cultura é o prato principal dos debates que nascem, muitas vezes de tertúlias improvisadas, numa esquina ou esplanada algures na zona Baixa/Chiado. Alguém lança a questão, o porquê da cultura produzida por negros em Lisboa passar despercebida pela maioria da população negra a residir em Portugal. As vozes exaltam-se, as opiniões divergem e coitados daqueles que estiverem à volta. A cacofonia de sotaques é de tal ordem dissonante e com tal volume, que até eu que gosto de debates apaixonados, reconheço que seja desconfortável.

O que os salva é o humor. Aqueles encontros que se querem breves, dado o cariz inusitado que lhes atribuímos, rapidamente se transformam em longas horas de conversa, algumas até pela madrugada dentro, com a inclusão de outros intervenientes que estejam de passagem mas que não resistindo ao convite a tomar uma cerveja, vinho ou ginjinha, se instalam, contribuindo também com os seus bitaites, elevando aquela troca acalorada de ideias - sobre Lisboa, cultura, nós os negros e eles os brancos (ou pulas, ou nguentas, dependo da geração e da geografia dos seus intervenientes) - para o patamar de conferência. 

O distanciamento em relação ao que se produzida e consumia fora do eixo Cais da Rocha e Calvário é tão grande que já dei por mim a perguntar se estaremos a comunicar em línguas diferentes. De um lado esta a tal miscigenação cultural com que todos sonhamos, bem real, com público com poder de aquisição; e do lado oposto a esta, os agitadores culturais, grupo no qual me incluo. Meninos de cor, afro-lisboetas, alfaces pretas como lhes chama o actor e escritor Matamba Joaquim. Interessados no mundo e no lugar do negro dentro deste quadro. Eloquentes e rápidos em desmistificar e quebrar clichés sobre o que é afinal ser negro, ou preto ou castanho, termo usado de forma carinhosa por alguns brancos-negros ou “bolicaos” como são chamados nos subúrbios, quando apanhados no equívoco causado ao tentar identificar ou classificar o homem segundo a cor que o carrega. 

 Ainda sobre o distanciamento do que se consome e produz dentro do eixo Bairro-Alto e Cais do Sodré, questiono-me se não estaremos todos em frequências diferentes. E como estranhos que dividem o mesmo lar, caminhamos como um oceano de equívocos a separar os negros da cidade e os do gueto, os que ouvem Kizomba e os que ouvem jazz, os licenciados e os iletrados, os que ainda matabicham e os que agora só tomam brunch, os que acham que o problema são os brancos que não dão oportunidades e os que acham que são os negros que não querem aprender, os do Colombo e os da Avenida da Liberdade, os das obras e limpezas e os que escrevem para os jornais e se dão ao trabalho de parar numa esquina ou esplanada a discutir coisas de preto. Nossos mambos.

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