Ainda é correcto falar de Descobrimentos?

Novo Dicionário da Expansão Portuguesa foi lançado esta semana pelo Círculo dos Leitores. Dirigido pelo historiador Francisco Contente Domingues, não faz do politicamente correcto uma prioridade.

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Pode perguntar-se até que ponto a recente valorização da ciência associada aos Descobrimentos não tem também a sua agenda PAULO WHITAKER/REUTERS
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Francisco Contente Domingues, especialista em História Marítima, dirige este dicionário ICARDO CAMPOS

Há dois "Descobrimentos" no artigo assinado por Francisco Contente Domingues no novo Dicionário da Expansão Portuguesa (1415-1600), a obra editada pelo Círculo dos Leitores e lançada esta quarta-feira no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Depois da leitura da entrada dividida em dois pontos, quase podemos dizer que há os bons e os maus Descobrimentos. O historiador optou por analisar o termo no singular, “descobrimento”, para nos obrigar a olhar para o acto em si, porque a “tónica devida” é precisamente a do seu carácter relativo.

“O ‘descobrimento’ faz sentido em função do património geográfico da realidade cultural e civilizacional de onde emana o ‘descobridor’.” O próprio conceito é “civilizacionalmente autocentrado” — escreve Contente Domigues, que dirige o dicionário — e começou a ser posto em causa sistematicamente depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Mas, sim, podemos dizer que os nativos norte-americanos foram descobertos, contrariando os mentores das anti-comemorações das viagens de Pedro Álvares Cabral ou Cristóvão Colombo, que criticam a bondade das iniciativas ibéricas e argumentam que a América já tinha populações que lá estavam há mais de dez mil anos. “Descobertos, sim: os Descobrimentos deram início a um processo de conhecimento global — de mundialização — que não teria retrocesso e se iria pelo contrário aprofundando com o correr dos séculos.”

Devemos ou não falar de Descobrimentos portugueses? — é um das primeira perguntas que fazemos ao historiador Francisco Contente Domingues, especialista em história marítima, durante a entrevista no seu gabinete na Faculdade de Letras de Lisboa. “Absolutamente que sim, deve-se falar de Descobrimentos.”

Contente Domingues diz que é claro que os povos da América e da Austrália foram descobertos. “Seja qual for a volta que se der, nomeadamente por parte dessas culturas por se sentirem afectadas negativamente pela chegada dos europeus, criou-se uma visão cosmopolita do mundo que não existia.”

Então por que razão a palavra não consta do título do dicionário como constava do anterior, também editado pelo Círculo dos Leitores, em 1994 — Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dirigido por Luís de Albuquerque e de que Contente Domingues foi o braço-direito? “Porque os Descobrimentos são uma parte da expansão.” O dicionário, defende, não tinha outro nome possível. “É claramente mais confortável definir esta época como o período dos Descobrimentos geográficos e do início da Expansão portuguesa pelo mundo. Há um movimento expansionista, ainda não há contracção.”

O historiador afirma que não tentou evitar ideologicamente, em nome de um politicamente correcto, a palavra “Descobrimentos” no título. “A palavra ‘Expansão’ também provoca esse mal-estar. Mas é perfeitamente evidente que há pessoas que não gostam de ‘Descobrimentos’. Porque no fundo reportam-se sempre à chegada ou ao contacto dos povos europeus com outros povos. No caso da 'Expansão' é pior, porque suporta a ocupação efectiva dos espaços e o controlo de territórios. Mas é uma descrição da realidade das coisas.”

O que aprendemos na escola, lembra o professor catedrático, é que Descobrimentos quer dizer que os portugueses foram os primeiros a chegar — uma imagem construída debaixo do optimismo civilizacional do século XIX. “Mas saber quem é o primeiro a chegar é uma falsa questão, porque quando muito podemos saber quem é o primeiro a chegar que deixou memória disso. Os viquingues estiveram na América três gerações, é completamente inquestionável. E porque é que não descobriram a América? Porque, de facto, não fizemos nada com esse conhecimento. Com Colombo podemos falar do descobrimento da América porque em consequência dessa viagem há outras viagens que incorporaram aquela realidade no conhecimento.”

Diferentemente dos outros, “os Descobrimentos geográficos europeus, logo desde os séculos XV-XVI, foram cartografados e publicitados pela imprensa”, escreve Contente Domingues na entrada. “Viagens fortuitas de resultados ingnorados nada contam: mais importante do que chegar é a capacidade de regressar e a possbilidade da representação gráfica nos mapas da época.”

Se olharmos para as historiografias estrangeiras, não encontramos esta presença maciça da palavra “Descobrimentos”. “Portugal é o único país onde há uma matéria universitária chamada História dos Descobrimentos e da Expansão.” De facto, à excepção de Cristóvão Colombo e da América, diz o historiador, antes do século XVII as descobertas importantes são todas portuguesas. “Os italianos falam em história das explorações e estudam isso no departamento de Geografia. Os espanhóis só têm o descobrimento, só valorizam o Colombo, portanto têm cursos e departamentos de História da América. A maior parte dos países tem História da Expansão e dos impérios marítimos a partir do século XVII. Os Descobrimentos acabaram, entre aspas, com a exploração polar, mas pelos vistos isso não interessa nada.”

Tempos de Wiki
Em tempos de Wikipédia, Francisco Contente Domingues construiu um dicionário diferente daquele que fez com Luís de Albuquerque. “Sobretudo quanto à filosofia, porque há 20 anos os dicionários históricos procuravam a exaustividade. Aqui procura-se uma cobertura temática dos assuntos.”

A entrada dedicada às especiarias, que os portugueses trazem do Oriente em número de 40, está focada nas cinco realmente relevantes do ponto de vista económico e político: a pimenta, o cravo, a noz-moscada, o gengibre e a canela. É escrita por Manuel Lobato e surge entre as entradas “esfera armilar” e “estado da Índia”.

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A carta náutica portuguesa mais antiga que se conhece, de cerca de 1471, e que é da Biblioteca Estense Universitária de Modena, Itália (exposição 360º Ciência Descoberta na Gulbenkian em 2013) Miguel Manso

“Podíamos ter um artigo sobre as 40 que vieram, mas aqui tem-se um sobre cinco especiarias que fala de todas de uma forma mais abrangente. Isso permite-nos ter um pano de fundo do que são as especiarias na cultura da época. Em todos os sentidos, gastronómico, científico, etc.” Uma opção que permitiu alicerçar o dicionário em cerca de 50 pequenos ensaios no meio de 390 entradas. Não há artigos sobre o astrolábio, o quadrante ou a balestilha, mas uma entrada sobre instrumentos de navegação que inclui todos eles, lê-se na introdução.

“É um dicionário construído com base em entradas de fundo complementadas com entradas especializadas, porque é da própria natureza de uma obra destas não faltar a biografia de Vasco da Gama.” Das mil entradas do dicionário anterior, desceu-se para as 390. “Há menos texto, globalmente falando, e está construído num sentido mais compreensivo do que descritivo.”

Na entrada sobre cartografia náutica, António Costa Canas escreve que a cartografia é “um dos factores de sucesso dos Descobrimentos portugueses”, mas também que, “na época dos Descobrimentos, os portugueses não produziram grandes invenções".

Os historiadores da ciência não falam tão facilmente da revolução geográfica introduzida pelos Descobrimentos como das várias revoluções epistemológicas na física ao longo dos séculos — e Contente Domingues não sabe explicar porquê. “Qualquer historiador da ciência dirá com certeza que o Galileu é um revolucionário, Newton também, mas a revolução geográfica não é bem a mesma coisa. Não é a mesma coisa porquê? O mundo é completamente diferente daquilo que as pessoas pensavam que era. Mas do ponto de vista do discurso historiográfico não está reconhecido que esta alteração seja tão significativa como aquelas que se deram com a disciplina da Física nos séculos XVI e XVII.”

A entrada dedicada à “revolução geográfica”, de Angelo Cattaneo, só consta do segundo volume, que ainda não foi lançado.

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Ricardo Campos

Descobre-se, então, o quê? “Que há uma herança clássica que a Europa conhece que não bate certo. É recorrente nos nossos documentos a afirmação ‘ao contrário do que diz Plínio’…” Toda uma problemática explicada pela entrada dedicada à experiência, feita por Onésio Teotónio Almeida. “Eles vêem com os olhos deles que as coisas são diferentes. Há uma acumulação brutal de informação, bichos, plantas e estrelas que são completamente diferentes”, explica Contente Domingues, “mas não se constroi a partir dessa visão uma explicação totalmente nova do funcionamento das coisas”. Ou seja, a contribuição fundamental das navegações não é tanto a construção de um mundo novo mas a desconstrução do mundo antigo.

Os mitos
O que se pode perguntar também é até que ponto a valorização da ciência associada aos Descobrimentos que temos visto mais recentemente não tem também a sua agenda. Como se a ciência fosse o último reduto de uma certa neutralidade que, de certa maneira, redimiria a empresa dos Descobrimentos dos seus males.

“A ideia de que o que nos movia era o conhecimento é um dos grandes mitos da História portuguesa. Isto tem a ver com uma desvalorização do comércio, considerado uma coisa mesquinha. Estamos também a pagar a factura de uma valorização social da ciência que vem desde o século XVIII, a concepção de que a ciência tem de ser útil para o desenvolvimento das sociedades. Andamos sempre à procura da justificação para isso.”

Em 1994, quando em Portugal se falava muito de Investigação e Desenvolvimento (I&D), o historiador lembra-se de ouvir o Presidente Mário Soares na televisão a referir a Escola de Sagres como um exemplo de I&D. No dia seguinte, no ano em que se comemoravam os 600 anos do nascimento do Infante D. Henrique, o primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva repetia a mensagem. “Isto são ideias completamente falsas. Em primeiro lugar porque a Escola de Sagres não existiu, em segundo lugar ninguém estava a fazer investigação. A facilidade com que a gente retroprojecta problemas actuais para o passado é tão grande que se torna às vezes difícil conseguir responder a questões como essa. A própria ideia que temos de que a ciência é muito importante é completamente contemporânea.”

A entrada dedicada à escola, escrita também por Sousa Pinto, é lapidar: “É seguramente o mito mais enraizado e duradouro da expansão ultramarina portuguesa: a ideia de que o infante D. Henrique teria fundado em Sagres uma academia dedicada aos estudos náuticos, geográficos e astronómicos, na qual se teriam alegadamente instalado os maiores sábios europeus da época e onde as viagens de exploração do Atlântico teriam sido cientificamente preparadas e validadas.”

Quando falamos da ciência que os Descobrimentos portugueses trouxeram, do que devemos então falar?

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Há cinco especiarias relevantes do ponto de vista económico e político: a pimenta, o cravo, a noz-moscada, o gengibre e a canela Enric Vives-Rubio

“Devemos falar de conhecimento de novas realidades, de experiência empírica, nas áreas da geografia, zoologia, botânica ou astronomia. São raríssimos os casos em que há uma operação teórica sobre esses conhecimentos. Uma coisa é registar-se determinada ocorrência, outra coisa é perguntar-se porquê e dar a resposta… Nos descobrimentos estamos no domínio da contribuição para o conhecimento de novas coisas, não na reflexão sobre elas. Há um caso, só um, em que se sabe o dia e a hora e em que podemos dizer que é um procedimento completamente científico: quando D. João de Castro, a bordo de um navio, faz uma série de experiências para averiguar a razão pela qual as agulhas perdem o rumo.”

Há 50 anos atrás, por exemplo, qualquer historiador diria que Pedro Nunes tinha sido fundamental para os descobrimentos marítimos, aponta Contente Domingues. “Hoje é líquido que não tem nada a ver com as navegações. Ele tem uma obra de 1537 em que diz logo que os pilotos se riem muito do que ele diz. E tem toda a razão: matematicamente é extraordinário, mas do ponto de vista prático não interessa para os pilotos.” O que talvez se possa afirmar, defende o historiador, que “há uma desvalorização de um pensamento científico alheio aos Descobrimentos”. “Porque não há só um Pedro Nunes, há vários outros Pedros Nunes.”

“O que se pode dizer também é que a experiência empírica prepara o caminho para a aceitação posterior de um novo discurso científico, a ciência moderna do século XVII” — Galileu ou Kepler.

Francisco Contente Domingues diz que os 37 especialistas que participam neste dicionário são o "who is who" de quem faz história da expansão em Portugal. Têm idades que variam entre os 35 e os 75 anos e vêm de nove países (Portugal, EUA, França, Itália, Reino Unido, Macau/China, Espanha, Irlanda, Alemanha). “O irlandês é a única pessoa que até hoje esteve a estudar em Espanha os pilotos portugueses.”

“Isto é muito o trabalho de uma geração formada pelos primeiros cursos de especialização da expansão, com mestrados e doutoramentos”, nota o historiador de 56 anos. A característica dessa geração, em termos de olhar, é que é "muito mais aberta a uma tentativa de compreender as coisas como elas devem ser vistas e não em função dos quadros imagéticos e imaginários do passado”. O que se fez nos últimos 20 anos foi cortar com uma série de temas e problemas que foram persistentes no nosso pensamento historiográfico.

Um desses mitos é exactamente a existência da Escola de Sagres. “No final do século XVIII consolida-se o discurso de que esta gente dos Descobrimentos fez certas coisas e não pode ter sido por acaso. A ideia de que os Descobrimentos são preparados, que correspondem a um esforço de interrogação científica, é uma ideia que começa a mudar aí.”

Outro desses mitos é a existência de uma “política de sigilo” imposta por D. João II e a ideia de que a descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral não foi um acaso. É “possível” que antes de Cabral outros navegadores já tivessem chegado à costa norte do Brasil, escreve Maria Adelina Amorim, mas a armada que partiu a 9 de Março de 1500 do Tejo com destino à Índia é a que historicamente teve consequências.

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Manuscrito que chegou até hoje do matemático Pedro Nunes (1502-1578), que pertence à Biblioteca Nacional de Florença (exposição 360º Ciência Descoberta na Gulbenkian em 2013) Miguel Manso

O segundo volume do Dicionário da Expansão Portuguesa deverá entrar na tipografia proximamente e sairá no início de Março. Começa na letra "i", de "pedras de Ielala".

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