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Agostinho da Silva: biografia falhada

O biógrafo compara-o a Moisés, Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Estará a gozar connosco? Infelizmente, nem isso

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Agostinho da Silva: uma biografia construída de forma impressionista e especulativa, com falta de rigor factual e constantes imprecisões Luís Ramos - Arquivo

Goste-se ou não da personagem, na riquíssima trajectória biográfica de Agostinho havia matéria-prima mais do que suficiente para produzir um livro apaixonante. O autor trabalhou, não há dúvida. Todavia, concentrou o seu esforço na tarefa de escrever um livro colossal, em detrimento daquilo que é exigível em qualquer obra que se pretenda “biográfica”. A ausência de pesquisa fica patente logo nas primeiras páginas, onde a genealogia do biografado se resume ao que este quis dizer sobre os seus antepassados. Todo o volume, de resto, é atravessado por constantes e longuíssimos trechos de Agostinho, opção que, num balanço final, acaba por não nos trazer nada de novo, excepto a admiração ilimitada do biógrafo pelo seu objecto de estudo (“Este meu biografado era um monstro de duas cabeças! Duas? Duzentas! Não é de admirar que eu lhe chame anormal!”, grita o autor, na p. 271).

Quando se depara com lacunas ou falhas de informação, o autor entrega-se à dedução e ao palpite – o que, convenhamos, não é um método credível de escrever história, para mais a história de uma outra vida. Com cândida franqueza, António Cândido Franco confessa que, quando não sabe, inventa: “Às vezes deixo-me embalar e o resultado é este, dou por mim a inventar. Deixe o leitor passar, que a imaginação sabe muito. E se não sabe, tem ao menos sabor. Sem tais pontos imaginosos, uma biografia é estéril e sensaborona” (p. 623).

Este trecho resume, em poucas linhas, a orientação de todo o livro, em que os lapsos de investigação e de informação fiável são colmatados por um investimento, para mais excessivo, na imaginação fantasiosa e no verbo torrencial. “A suposição vai muito melhor do que a certidão”, diz o autor, como se uma biografia séria e credível pudesse dispensar o rigor dos factos, atestado por documentos ou testemunhos fiáveis.

Além da bibliografia activa e passiva de Agostinho, de um escasso levantamento da imprensa e da consulta de apenas um documento de arquivo – o processo de Agostinho na PIDE/DGS –, o autor manteve apenas algumas conversas com duas ou três pessoas, quando bem poderia ter entrevistado dezenas de personalidades relevantes. E, apesar de o seu biografado ter permanecido décadas no Brasil, nada indicia que o autor se tenha sequer deslocado até lá, na busca de testemunhos inéditos e novos dados.

Daí que muita informação fornecida neste livro seja esparsa, fragmentária, além de formulada em termos hipotéticos e conjecturais. Quanto à ida para o Brasil, “pouco se sabe da viagem de Agostinho e até das datas exactas dela”. Dos antepassados remotos nada se diz, pois nada se procurou. O pai de Agostinho “alguma escola há-de ter feito” e a mãe, por seu turno, “alguma educação há-de ter tido em casa” (pp. 22-23). O pai “deve ter sido em Barca de Alva um funcionário laborioso e exemplar” (p. 42), mas acabou sendo demitido pois “também devia haver gente que não gostava muito dele” (p. 65). No Riley Institute, no Porto, aprofundou a aprendizagem de línguas talvez “em 1922, ou antes”, o que “é ponto a esclarecer” – mas não neste livro. A irmã, entretanto, estaria “a estudar decerto em escola comercial”, não havendo certezas na matéria. Na universidade, Agostinho terá exercido cargos associativos mas quanto às datas em que o fez “os elementos que hoje correm desdizem-se” – e o autor não procurou deslindar a verdade.

Mais certezas possui quanto à vida sexual do jovem prodígio. Fornece-as porque “uma biografia sem sexualidade é como uma tela sem tinta; não existe”. Ou, como dirá noutro passo, “não há biografia que se aguente sem tratar tal questão. Biografia quer dizer escrita da vida e só há vida porque há sexo”. Assim, abordando o sexo em Agostinho, e como “o instinto nele era rijo”, “houve nas soalheiras tardes da Comércio do Porto, como nas noites álgidas de Inverno, entre lençóis, muito onanismo para aliviar a pressão séria do instinto, como aliás sucede hoje com qualquer mocinho de idêntico adolescer”. Além dessa actividade solitária, terá havido, porventura, “visita a bordel nocturno”, pela simples razão de que um tio seu era libertário e, logo, “mais solto de costumes”. É assim, desta forma impressionista e especulativa, que toda a presente biografia se encontra construída, pelo que não admira a falta de rigor factual e as constantes imprecisões, que levam o autor, por ex., a colocar Agostinho a aprender francês, inglês, esperanto, latim, grego, alemão e holandês, na p. 127, quando pouco antes dissera que o seu biografado recebera também rudimentos de língua japonesa (p. 69). Não é um pormenor de somenos, tendo em conta que, graças a uma bolsa da UNESCO, em 1963, Agostinho se desloca ao Japão, de onde trouxe “uma japonesa de carne e osso”. Mas, de novo, avulta a ignorância: “sobre esta madame do Sol Nascente pouco sei e o que sei foi pescado de outiva”. Afirmando, para mais, que dessa mulher teve um ou até dois ou três filhos, não competia indagar a fundo este episódio?

No Verão de 1929, Agostinho abandona o Porto, fixando-se em Lisboa. Uma vez mais, o palpite: “não sei onde se instalou, mas calculo que procurou uma pensão barata, com refeições incluídas, na zona velha da cidade”. Sobre a docência no Gil Vicente o autor nada esclarece, preferindo divagar sobre as deambulações do seu ídolo na capital do país, entre “a cal branca da cidade” e “a safira sem fim do rio”. Apresentou-se a concurso para professor em Belas-Artes, sendo o exame descrito como um triunfo absoluto do candidato sobre o júri (“um bailinho!”), enquanto, na assistência, “o público partia a moca de riso”. Em Lisboa, Agostinho frequentaria ainda a Escola Normal Superior para se efectivar como professor de liceu. O seu biógrafo, porém, diz-nos: “não tenho qualquer certeza sobre o lugar onde funcionaria a Escola Normal mas ponho como possível uma antiga dependência da antiga Faculdade de Letras de Lisboa” (nem uma informação tão simples foi o autor capaz de recolher?).

Entretanto, Agostinho começara namoro e anunciara noivado. Formara-se assim “um casal disposto a curtir a vida”, pelo que “iam talvez a Sintra e Cascais passear na serra”; depois de casados, o biógrafo presume que terão feito “muitos passeios às praias da Outra Banda para meter os pés na água rasa da vazante e correrem abraçados por entre as redes que os pescadores alavam no areal”. Note-se que este quadro romântico não tem por base a mínima informação factual. Quanto ao que interessa, “não sei onde ficava o casulo que alugaram mas calculo que seria para Campo de Ourique”. A única pista que o autor apresenta é o facto de ser um “bairro populoso” e “com oferta copiosa e acessível”, ademais não muito longe do local onde Agostinho leccionava. Teria o jovem casal uma empregada doméstica, “virago beiroa de buço grosso, barbada até”, mas confessa o biógrafo: “é suposição minha, que as fontes sobre o casamento são sequinhas; sobre o enlace com Berta David nunca o meu bardino, que eu saiba, se pronunciou”. E, como o seu bardino não se pronunciou, o biógrafo segue-lhe as pisadas, candidamente.

São meros exemplos, entre as dezenas ou mesmo centenas que este livro contém, em que a ficção se sobrepõe à realidade, esmagando-a, prescindindo dela. Diz-se que, quando jovem docente, Agostinho proferiu inúmeras conferências na Universidade Popular Portuguesa; mas logo acrescenta o autor: “não conheço registo das palestras que fez no salão da instituição”. Refere-se que terá realizado uma pós-graduação na Sorbonne, com tese sobre Montaigne; mas, adverte o biógrafo, trata-se de “informação impossível para já de confirmar”. Num livro de 700 páginas, dedicado a Agostinho da Silva, saber se este fez, ou não, uma pós-graduação na Sorbonne não é uma irrelevância ou um detalhe acessório. Tempos depois, leccionará no Colégio Infante de Sagres. Como lá chegou? “Não é fácil dar resposta certa”, responde-se. Em contrapartida, parece o autor ter mais certezas de que Agostinho da Silva, na companhia do colega Orlando Ribeiro, “tomou banho de pila ao léu” no Algarve (ou, se preferirmos, “na terra de Teixeira Gomes”).

No período final da vida, Agostinho apareceria na televisão, em treze programas de Conversas Vadias. Segundo o seu biógrafo, terá esmagado Miguel Esteves Cardoso, que “foi despido, esfregado, amarfanhado e deixado cair sem a mais leve complacência como papel do lixo”. Em suma, o mestre deu uma “ensaboadela gigantesca” ao “garoto”. Teria sido importante recolher o testemunho de Esteves Cardoso, além daqueles que, segundo o autor, levaram de Agostinho um “bailarico televisivo”, como Joaquim Vieira (“Que baile!”), Maria Elisa, Adelino Gomes ou Baptista-Bastos.

O estilo da escrita é kitsch, com abuso de lugares-comuns, linguajar vadio e frases do género: “A República de Afonso Costa, gaiata de quatro anos, caiu de cama, diagnóstico reservado, quase a dar o badagaio”. Quando jovem, tinha Agostinho vorazes apetites literários, que o autor resume na seguinte frase: “Que larica, para gaiato de 15 anos!” Apreciava também ir à praia de Matosinhos, “mostrar o pêlo da perna”. Em todo o caso, e numa avaliação geral, era “um doce e pacato Zé dos Anzóis”, que vivia no “cu de Judas” enquanto cursava Letras no Porto, sendo já nesse tempo “homem que nunca hesitou entre goraz e linguado”. Deambulava o estudante pela Invicta, “onde de mistura com muito trote teimoso de muar se faziam agora ouvir com frequência as buzinas tolas dos automóveis”. Por certo às escondidas, exercitava “o toque de Onan”, acalmando as paixões da carne em “banho de água gelada, com certeza em tina de semicúpio, para baixar a fervura e pôr os penates em movimento”. Cansado dos atropelos da República, “encarou com simpatia a marcha militar de 1926”, ainda que desconheçamos onde se baseia o autor para proferir esta afirmação. Enquanto docente, “não era um professor baldas”; seria, isso sim, “um betinho, de rosto imberbe”. Vindo para Lisboa, foi alvo de perseguição por parte de um colega docente, e nessa “não havia pedaço de sala em que Agostinho pudesse poisar o cu sem que o zangão lho viesse picar”. Foi, apesar disso, “um professor das Arábias”, a ponto de o seu biógrafo proclamar: “Enquanto houver escola, ou coisa que o valha, não há-de passar a memória do professor Agostinho da Silva!” No Pedro Nunes, por ex., o seu ensino em nada se assemelhava ao dos seus pares ou, se preferirmos, dos “coninhas que lá se encolhiam”. Um homem superlativo, que “em cada vírgula punha uma competência admirável” e que fundou dezenas de centros de investigação, “alguns bué ilustres”. Foi para Paris, como bolseiro. “Ai, a Torre Eiffel! Ai, o Arco do Triunfo! Ai, o Bairro Latino! Ai, os Campos Elísios! Ai, a Sorbona!” (os suspiros são do biógrafo). Continuou, porém, a ser um espírito inconformado e rebelde; ou, nas palavras do seu biógrafo, “que anarca, vida minha!” Daí os riscos do encontro que, na capital francesa, teve com António Sérgio (um homem que, observe-se, “nunca perdera o tesão” por Antero). Tratava-se de uma operação arriscada, que “podia dar bernarda, com os dois à berlaitada, como derriço de casa e pucarinho”. Isto porque Agostinho tinha “o coração do leão feroz de Trás-os-Montes” e Sérgio, de seu lado, “não era menino para se calar; tinha cagança pedagógica para um país, quanto mais para um bolseiro vinhateiro”.

Cândido Franco não esconde o deslumbramento pela personagem que estudou, tratando Agostinho, com insuportável frequência, por “meu biografado”, “meu garoto”, “meu pequeno rústico”, “o meu Silva”, “meu celtibero”, “meu ibero”, “o meu homem”, “meu bolseiro”, “meu plantígrado”, “meu duriense”, “meu macróbio”, “meu peixe”, “meu íncola”, “meu bisonho”, “meu vivaço”, “meu vagabundo”, “meu berbere”, “meu nómada”, “meu meileca”, “o meu mangas” ou “o meu velho”. Diz que Agostinho é autor de “uma das mais vistosas enciclopédias do mundo, feita por um só homem”. E qualifica-o ainda como “o mais importante biógrafo português de sempre”.

Porém, a ideia de que Agostinho era um intelectual puro, dominado inteiramente pelas coisas do espírito, não tem correspondência com a realidade. Ou, se quisermos, “o filólogo, o professor engravatado, o renomado intelectual é tanga, meu! Nunca existiu”. O que existiu, isso sim, foi um “titã meio aciganado”, devorado pelos mais primevos instintos. “Matava com a mão o apetite do bicho mas o que ele queria mesmo era o corpo meio nu da prima nas mãos.” Compreenda-se a atitude do mestre, que “não era nenhum destesticulado, que tivesse por horizonte roer só papel; tinha força na verga e o bicho, sempre a levantar, desinquietava-o”.

A questão, entendamo-nos, não é de bom-gosto ou decoro, de pudor escusado ou de falsos moralismos. O problema reside na circunstância de o autor se permitir estas divagações pseudo-eróticas sem que, do mesmo passo, consiga esclarecer-nos sobre factos objectivos tão elementares como o lugar de nascimento da mãe do seu biografado; as palestras que este proferiu na Universidade Popular; se concluiu ou não pós-graduação na Sorbonne; se foi para Madrid sozinho ou na companhia da mulher; onde morava quando veio do Porto para Lisboa; como e porquê começou a leccionar no Infante de Sagres; se viajou ou não até Lisboa, em 1954, como representante do governo brasileiro, buscar a carta de Vaz de Caminha; quem o convidou para leccionar em Harvard; se a filha foi esperá-lo ao aeroporto quando regressou definitivamente a Portugal; que meios tinha para subsistir, etc., etc. E à fatal pergunta sobre onde estava no dia 25 de Abril, responde o biógrafo: “para o gosto que teria em falar deste assunto, faltam-me porém dados. (…) Sei pouco”. E sobre o 1º de Maio, o de 1974? “Nada encontro, para tristeza minha, sobre o caso”. Logo após a revolução, Agostinho escreveu uma carta aos exilados políticos que regressaram – só Cunhal lhe respondeu – mas o seu biógrafo desconhece o teor dessa missiva, documento fundamental que poderia talvez ser procurado com sucesso em arquivos públicos ou privados (por ex., em contacto com Soares e a sua fundação). Em vez destas questões, o autor prefere comparações grandiosas, cotejando Agostinho da Silva e Miguel Ângelo para concluir que “os dois criadores são labaredas gémeas!”

António Cândido Franco, diz-nos o próprio, dedicou dez anos da sua vida a investigar a existência de Agostinho Baptista da Silva, “um dos gigantes universais da História humana”. O biógrafo compara-o a Moisés, na idade antiga, e, em tempos mais recentes, a Francisco de Assis, Tolstoi, Gandhi e Luther King. Mais adiante, não hesita em tratá-lo por “o Adamastor da Palhavã”. Estará a gozar connosco? Infelizmente, nem isso.

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