Adirley Queirós filma os subúrbios de Brasília à imagem de Blade Runner

Em Lisboa para apresentar Branco Sai Preto Fica no Doclisboa, o cineasta brasileiro fala de assumir uma cinefilia popular para reivindicar um papel de corpo inteiro para os subúrbios e favelas.

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"A minha cinefilia é bangue bangue, karaté, Bruce Lee, filmes de acção... Uma das nossas referências era Blade Runner"
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Marquim à esquerda na cadeira de rodas, Shokito sentado de cabeça baixa
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O actor Dilmar Durães

Adirley Queirós, 36 anos, sabe do que está a falar: o cineasta brasileiro é natural de Ceilândia, 300 mil habitantes, subúrbio-satélite da capital utópica desenhada por Óscar Niemeyer, e é o principal impulsionador do Ceicine - Colectivo de Cinema de Ceilândia, com o qual filma há cerca de uma década. Com ele, num dos foyers da Culturgest, está Cláudio Irineu Shokito, 45 anos, atleta paralímpico e um dos “actores/personagens” que Queirós filmou em Branco Sai Preto Fica, e confirma o que o realizador diz. “Quando criança, escondíamos que morávamos em Ceilândia, porque éramos discriminados. Eu tinha anseio de ser jogador de futebol, que era uma coisa mal vista, de vagabundo – não quer estudar, não quer trabalhar, vai jogar à bola – e tinha de esconder essa identidade para tentar sair. Não da cidade, mas da condição de sub-vida que a gente tinha em Ceilândia.”

“O Brasil são Ceilândias,” diz Adirley, “uma grande favela, mas o que torna Ceilândia um lugar muito específico é estar colada ao poder, ao lado do poder, ser um espelho ao contrário da cidade.” E é esse espelho que o cineasta brasileiro literalmente faz voar em mil estilhaços com este “documentário spaghetti” que é o filme mais vital do concurso internacional do Doclisboa 2014, e um dos objectos mais estimulantes da moderna nova vaga de cinema brasileiro. Branco Sai Preto Fica – que ainda pode ser visto na sexta-feira à meia-noite no City Campo Pequeno - parte de um caso real que teve lugar em Ceilândia em 1986, num “baile black” de legalidade duvidosa no abandonado centro cultural do Quarentão. “Toda uma geração, de homens principalmente, diz que estava naquele baile,” ri-se Queirós, “mas é mentira, não era possível estar lá tanta gente. Todas as histórias são diferentes mas convergem num tiro nas costas de um garoto.”

Esse garoto ficou numa cadeira de rodas: chama-se Marquim do Tropa e interpreta-se a si mesmo no filme, mas colocou uma condição para aparecer: “só se fosse um filme.” “Os meninos achavam que documentário não é cinema,” explica Adirley Queirós. “Para eles filme é aventura, acção, corte de câmara... E isso foi muito significativo, e a equipa pirou com a ideia de um doc-ficção-científica! Queríamos fazer um filme como os que víamos na nossa infância. A minha cinefilia é bangue bangue, karaté, Bruce Lee, filmes de acção... Uma das nossas referências era Blade Runner, que tinha filas enormes sempre que passava em Ceilândia. E queríamos que este filme assumisse esse imaginário de uma cinefilia popular que no Brasil é vista como de mau gosto por uma elite do pensamento, apoderar-se do género e fabular por cima.”

Branco Sai Preto Fica, então: um detective viaja no tempo para uma Brasília fascista-futurista para uma investigação com o intuito de compensar as vítimas da violência policial, quase todas negras, quase todas desfavorecidas, quase todas suburbanas. "Branco sai preto fica” foram as ordens da polícia durante a rusga fatídica no centro da investigação, ao baile do Quarentão onde Marquim do Tropa foi baleado e onde Sartana teria perdido uma perna. Se a história de Marquim é “real mas fabulada”, Sartana (nome de um dos anti-heróis dos western-spaghetti dos anos 1970) é uma invenção do filme, é interpretado por Shokito, que na vida real perdeu a perna esquerda numa operação que correu mal.

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Adirley Queirós é natural de Ceilândia, 300 mil habitantes, subúrbio-satélite da capital utópica desenhada por Óscar Niemeyer

“Interessava-me muito usar a história do Quarentão para perceber o que constrói a memória colectiva de uma cidade e, especificamente, desta cidade que é muito jovem,” avança Queirós. “A memória é muito perversa e é muito reaccionária, e o nosso medo justamente era cair nessa armadilha reaccionária de dizer que 'naquele tempo era melhor'. Se o tivesse sido as sequelas não estariam connosco e não estaríamos a fazer este filme…” 

Mas não o quis fazer na estética tradicional quer do documentário militante quer do “filme de favela”. “No Brasil existe um fétiche pelos filmes de favela, mas as personagens nunca conseguem sair do lugar deles porque o que interessa ao cineasta é que aquela realidade seja o mais cruel possível para eles não terem como sair,” diz. “Interessava-me mais entrar por onde não esperam que a gente entre. E acredito muito mais no cinema do que na militância simplesmente discursiva do slogan. Não tenho nada contra o panfleto mas a nossa questão era como transformar esse discurso de militância numa coisa que a gente curta, da qual possamos dizer 'isto é cinema'.”

A resposta está aí: Branco Sai Preto Fica.

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