A vida de Nick Garrie é uma aventura e o seu dom é a música
Editou em 1970 um disco que só seria redescoberto 35 anos depois. Nesse intervalo, foi muitas coisas – instrutor de esqui, número 1 nas tabelas espanholas, músico anónimo em pátios alentejanos. Temo-lo de regresso a Portugal. Esta quinta-feira em Lisboa, sexta em Sintra, sábado no Porto.
No Verão de 2012, esse mesmo inglês surgiu na Casa da Música, no Porto, integrado na programação do Primavera Sound. Sozinho em palco, tocou perante algumas centenas. Parte delas conhecia-lhe as canções. A outra parte, terminado o concerto, apressou-se a comprar The Nightmare of J.B. Stanislas, o disco de ternas e poéticas canções folk adornadas com orquestração opulenta que aquele inglês chamado Nick Garrie gravara em 1969 (e que ficaria perdido durante quatro décadas). A história da vida e da música de Nick Garrie é uma grande aventura - e o facto de ser autor de canções magníficas é o melhor de toda ela.
Esta quinta-feira, Garrie está de volta. Vamos vê-lo no Musicbox, em Lisboa (22h30, 8€), em mais uma noite Teach Me Tiger (na dia seguinte, os convidados das sessões programadas por Paulo Furtado serão os catalães Tokyo Sex Destruction). Sexta-feira Garrie actua na Galeria Flores do Cabo, em Colares, Sintra, e sábado estará no Porto, no Maus Hábitos. Não estará sozinho. Com ele nas três datas da digressão Electric Eden encontraremos os Beautify Junkyards, a banda que emergiu dos Hipnótica para reconstruir a folk psicadélica (e não só) da década de 1960 e 1970 e que se estreou em longa-duração o ano passado. No concerto desta noite, além das versões de canções dos Mutantes, Heron ou Kraftwerk que encontrávamos nesse álbum, espreitaremos já o que a banda prepara para o disco a editar em 2015, inteiramente composto de originais.
"Fiz tudo e não me arrependo"
O álbum The Nightmare Of J.B. Stanislas devia tê-lo tornado uma estrela. Com ele, Nick Garrie tornar-se-ia o próximo Bob Dylan. Pelo menos, era nisso que acreditava Lucien Morrise, director da editora DiscAZ, e Eddie Vartan, irmão de Sylvie Vartan e produtor de Stanislas. O suicídio de Morrise em Setembro de 1970 impediu-nos de saber se tais previsões se cumpririam. Nesse momento Nick Garrie, filho de pai russo e mãe escocesa, criança e adolescente que crescera entre Paris e Inglaterra, viajante de guitarra em punho mostrando as suas canções no sul de França ou na Holanda, deambulação paralela aos estudos universitários de Literatura Francesa na Universidade de Warwick, deixou de acreditar. O álbum acabou esquecido, perdido nos arquivos da editora. Perdiam-se o surrealismo de The nightmare of J.B. Stanislas, a romantismo ingénuo de Can I stay with you ou esse magnífica peça de folk nocturna apropriadamente intitulada Evening. Perdia-se?
“Quando estava a gravar todos me diziam que as canções eram muito boas e que faria uma carreira como cantor. Quando isso não aconteceu, deixei de acreditar. Decidi que faria outras coisas”. Ouvimo-lo desde Inglaterra, onde é hoje professor de francês. Conta-nos das outras coisas que fez. “Conduzi autocarros turísticos, fiz ski aquático, esqui. Fiz tudo e não me arrependo”. Podemos acrescentar o mais que fez: o resort que geriu na Suíça, a carreira no rugby enquanto atleta semi-amador, a empresa de balões de ar quente que desenvolveu, os filhos que viu nascer. E a música, que nunca abandonou. Nick Garrie pode ter deixado de acreditar numa carreira profissional em 1970, mas nunca descreu da música. Quando fala com o PÚBLICO, já passou quase uma década desde que nos reencontrámos, ou melhor, desde que descobrimos a dele.
Em 2003, decidiu “googlar” o seu nome. Para sua surpresa, a pesquisa devolveu-lhe centenas de páginas. Subterraneamente, The Nightmare Of J.B. Stanislas tornara-se um álbum de culto entre os apreciadores de folk psicadélica, com as edições originais a atingirem valores acima dos mil euros. Tudo recomeçava.
Primeiro a reedição do álbum de 1970 (2005). Depois, a gravação de um novo, 49 Arlington Gardens, com músicos dos Teenage Funclub ou BMX Bandits (2009). No ano seguinte, o lançamento de uma edição de The Nightmare Of J.B. Stanislas que, além do álbum original, nos oferecia como extra demos descarnadas, de uma delicadeza desarmante, gravadas em Bruxelas em 1968. Em 2012, a subida a um dos palcos do Primavera Sound, em Barcelona, para interpretar na íntegra, acompanhado de secção de cordas, The Nightmare of J.B. Stanislas.
Quatro décadas depois de ter deixado de acreditar, a descrença não fazia sentido, definitivamente. Nick Garrie tinha lugar de destaque no Primavera Sound e tocava em Inglaterra com os Camera Obscura. Era convidado para ir tocar a Nova Iorque e durante o concerto via raparigas de 21 anos a atirarem ao ar “os seus chapéus de cowboy”. Garrie julgou que estavam a ser “rudes” com o homem cantando as suas canções em palco. Precisamente o contrário: “Eram fãs do álbum e estavam a celebrá-lo. Não queria acreditar. Mas em todos os concertos que dei depois havia sempre gente nova a assistir”. Agora já acredita. “Tenho um grande amigo português a quem perguntei certa vez porque acontecia isso. ‘Bem’, respondeu, ‘escreveste canções sobre experiências que todas as pessoas têm ao longo da vida e, por isso, qualquer geração as compreende’”.
Desvendar o mito
Com a redescoberta, descobrimos a história completa. Que, por exemplo, Nick Garrie nunca deixou de editar. Em 1976 lançou Un Instant de Vie, colaboração com o acordeonista francês Francis Lai. Em 1984, quando passara a assinar como Nick Hamilton, surgiu Suitcase Man, que o levaria ao topo das tabelas espanholas e a uma digressão com Leonard Cohen. Em 2000, quando olhos e ouvidos que não o conheciam o viram e ouviram em bares alentejanos, estava, diz, “a voltar cantar a sério”. Foi nessa altura que se apaixonou pelo som da guitarra portuguesa. Dois anos depois, lançou Twelve Old Songs, recriação de canções suas com acompanhamento do instrumento ícone do fado.
A guitarra portuguesa, de resto, ressurgiria no supracitado álbum de 2009. Ouvimo-la em Stay til the morning comes. Para nosso espanto, conta que tocou a canção na televisão portuguesa. José Cid era convidado no mesmo programa e, amizade selada, Garrie acabaria a cantá-la em alguns concertos do autor de A lenda d’el Rei Dom Sebastião. “Para mim, essa canção é agora uma canção portuguesa”, confessa. Tem, de resto, uma relação próxima com o país: a biografia que acompanha a edição deluxe de The Nightmare Of J.B. Stanislas foi escrita nas Caldas da Rainha e, nela, encontramos entre os extras canções registadas em Portugal.
Nos três concertos portugueses Garrie actuará a solo, com os Beautify Junkyards a juntarem-se-lhe na interpretação de uma música. Ouviremos canções de todo o seu percurso e do caminho por vir: “tenho uma canção nova que gravei em Nova Iorque e vou testá-la nos concertos em Portugal”.
Ouviremos certamente Can I stay with you, Deeper tones of blue ou Wheel of fortune, três das doze canções de The Nightmare of J.B. Stanislas, o álbum que tornou possível redescobri-lo. Um disco inimitável. Nick Garrie explica-o. “A escrita das canções era uma extensão do que estudava na universidade. Estava a tirar um curso de literatura e o que me interessava mais era a escrita surrealista”, explica, antes de acrescentar: “Julgo que o meu material é singular devido ao meu crescimento entre Paris e Inglaterra. Todos os outros ouviam Dylan e Simon & Garfunkel, mas eu ouvia também Jacques Brel e Georges Moustaki”. Dos dois últimos retirou uma lição valiosa. “Percebi que cada palavra numa canção tem que ter um significado e, assim sendo, temos que eliminar tudo o que não seja necessário. Ficamos apenas com o mais puro”.
Em 1970, quando deu por si rodeado pelas orquestrações compostas por Eddie Vartan para The Nightmare Of J.B. Stanislas, responsáveis pela singularidade do álbum, achou o contexto “absolutamente ridículo”. Recorda, por exemplo, ter composto Little bird como “uma canção de embalar muito simples”. Mas, depois, viu-se entre dezenas de músicos a “tocarem cheios de pressa porque tinham que apanhar o próximo comboio”. Talvez tudo tivesse sido diferente se tivesse acompanhado de outra forma o processo – “não ouvi nada até entrar em estúdio”, garante. Talvez tivesse iniciado uma carreira fulgurante em 1970, não fora o suicídio do director da sua editora. Talvez nada disso interesse agora. “As canções são a única coisa que fiz na vida que terá alguma longevidade. Sobreviveram 40 anos e continuarão a ser ouvidas algures, por alguma pessoa, daqui a 30”.
Telefonámos a Nick Garrie na manhã de quarta-feira. Nessa tarde iria dedicar-se a outra actividade que mantém, para além das aulas e dos concertos. Garrie anima com canções idosos em lares de terceira idade. “Ensino os mais novos e toco para os mais velhos. É perfeito”. Quando a entrevista caminha para o final, conta uma história.
Dias antes, a caminho de um desses lares, este longe de tudo, em terra de ninguém, deparou-se com uma pequena casa. Pareceu-lhe um lar “muito triste”. Tocou à campainha e deparou-se com duas velhotas. “Perguntei-lhes se se importavam que lhes tocasse algumas canções de Natal. Toquei durante cerca de 45 minutos e os olhos delas brilharam quando comecei a cantar – acho que pensaram que eu era um anjo. Não podes comparar isto a nenhuma outra coisa. E não podes ignorá-lo. É um dom que tens. E usa-lo quando tens que usar”.
Nick Garrie está de regresso para nos mostrar esse dom. A sorte é toda nossa.