A vida de Agostinho da Silva
Uma biografia não é um género linear, como de resto nenhum género poético o é. Há pelo menos duas formas de entender a escrita duma vida: a histórica e a literária
Publicou o PÚBLICO, no suplemento Ípsilon, em 20 de Fevereiro de 2015, uma crítica ao meu livro, O estranhíssimo colosso - uma biografia de Agostinho da Silva, da autoria do Dr. António Araújo, constitucionalista, jurista, consultor do presidente da República e crítico de livros. O texto ocupa 15 parágrafos, um deles com mais de 80 linhas, o que tem como resultado estender-se por duas páginas do jornal. Seria muito revelador debater o texto palavra por palavra mas o exercício seria moroso e nenhum proveito traria ao leitor. Prefiro aproveitar o debate para recordar os passos gerais, alguns inéditos até aqui, da vida de Agostinho da Silva, trazendo a terreiro questões sobre o que é uma biografia, o que ajudará a situar o texto dado a lume no PÚBLICO.
A vida de Agostinho da Silva é fora do comum – rara mesmo. Começou a colaborar n’O Comércio do Porto em 1922, aos 16 anos, e nele assinou ao longo de dois anos vasta produção escrita, polemizando até consigo através de personalidades fictícias. Terminou aos 22 anos o curso de Filologia Clássica da Faculdade de Letras do Porto com 20 valores e doutorou-se com idêntica classificação aos 23 anos. Colaborava já então na revista Seara Nova, de que se tornará pouco depois um dos eixos. Em 1935, depois do estágio pedagógico no liceu Pedro Nunes e duma curta passagem por Paris como bolseiro, é confrontado com a lei Cabral, que obriga os funcionários públicos a assinarem uma declaração humilhante sobre associações secretas. Por imperativo de consciência, o seareiro recusa e vê-se aos 29 anos impedido de prosseguir a carreira do ensino público.
Dedica-se então ao ensino privado, que depressa troca pelo Núcleo Pedagógico Antero de Quental, uma criação sua, no seio do qual faz centenas de conferências em todo o país, ao mesmo tempo que inicia uma obra editorial gigantesca – os cadernos de Iniciação, os cadernos de Antologia, os cadernos À volta do Mundo e as biografias - que marcaram toda uma geração, em que encontramos nomes como Ruben A., Mário Soares, David Mourão-Ferreira, Luiz Pacheco, Lagoa Henriques, Luís Amaro, Victor de Sá e tantos mais. Sobre esta obra escrita pronunciou-se assim o exigentíssimo Eugénio Lisboa (Colóquio Letras, n.º 96, Março/Abril, 1987): “Refiro-me a Agostinho da Silva, cujos cadernos de divulgação, monografias e antologias eu, por essa altura, me pus a ler e, nalguns casos, a reler. Por este bálsamo, por este regresso a uma vida mais habitável, por esta libertação, numa palavra, por esta ‘cura’ – lhe fiquei para sempre grato.” E sobre a última das biografias que deu à estampa, Vida de William Penn (1946), declarou o não menos insuspeito Joel Serrão (Jornal, 30-11-1946): “Agostinho da Silva é, quanto a mim, um dos maiores, senão o maior, escritor da língua portuguesa contemporânea.”
Em Novembro de 1944, com 38 anos, depois duma estadia na prisão do Aljube, com um processo judicial a correr, desagradado com a situação do país, Agostinho partiu para o Brasil, onde encontra as condições de vida que o país natal lhe negava. Iniciou então nessa década uma carreira em instituições públicas brasileiras, que durou mais de duas décadas. Depois de alfabetizar à sua conta as populações de Itatiaia, começou por trabalhar como entomologista no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que ensinava na universidade de Niterói e fazia pesquisa sobre Alexandre Gusmão no Itamarati. Partiu depois para o Nordeste, onde se tornou um dos fundadores da universidade da Paraíba. Regressa em 1954 ao sul para se tornar responsável do pavilhão de História da mostra do Ibirapuera, centro das comemorações do IVº centenário da fundação da cidade de S. Paulo. É convidado para se tornar um dos fundadores da universidade do estado de Santa Catarina, para onde vai em 1955, assumindo de seguida, aos 50 anos, a directoria do Departamento de Cultura do governo estadual.
Em 1959 decide trocar Santa Catarina pela universidade da Baía, onde funda o Centro de Estudos Afro-Orientais – pioneiro nas relações académicas entre a África ocidental e o Brasil. Torna-se assim, em 1960, já nacionalizado brasileiro, assessor do presidente da República Jânio Quadros. Em 1962, com a construção da cidade de Brasília e a fundação duma nova universidade federal, é convidado para professor da nova instituição, onde funda o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses. Vive então num barracão de madeira no Planalto, repartindo o ordenado por estudantes pobres e serventes endividados. Com o endurecimento da ditadura militar no Brasil a partir do final de 1966, a situação institucional de Agostinho da Silva tremeu, obrigando-o a mudar de rumo. Eduardo Lourenço, outro imparcial, que o conheceu em 1959, em Santa Catarina, fez-lhe assim o retrato brasileiro (A última conversa - Agostinho da Silva, 1995): “Recebeu-me (.) como se me conhecesse desde sempre. Com uma enorme e negra aranha dos trópicos na palma da mão esquerda, divertido com o meu assombro e não pequeno temor. A Natureza e a sua face misteriosa, terrífica, o símbolo dos pesadelos e das ficções científicas, repousava nas suas mãos como num berço. Tinha domesticado ‘o mal’ como se ele não existisse. (.) Não sei se isto basta para perceber que espécie de ‘misticismo’ era o seu. Mas bastou-me para sentir, e definitivamente, que estava diante de um dos Homens mais extra-ordinários que me foi dado conhecer.”
Incapaz de permanecer num Brasil tutelado por castrenses cada vez mais acanhados, Agostinho decidiu, no quadro da abertura marcelista, regressar a Portugal. Tinha 63 anos e voltava como brasileiro. Para poder permanecer no país, estava obrigado a ir regularmente à fronteira carimbar o passaporte. Assim fez, dedicando-se dentro de portas ao cooperativismo, até à Revolução dos Cravos, altura em que se empenhou na reforma agrária. Aceitou de forma muito crítica a normalização que decorreu do primeiro governo constitucional e insistiu em transmitir até à sua morte, que ocorreu em Abril de 1994, uma mensagem libertária de ruptura com os valores dominantes do trabalho, da competência, da ordem, do mérito e do partidarismo estreito.
Uma vida tão genial – não fui que chamei a Agostinho um dos “Homens mais extra-ordinários” nem fui eu que declarei que se tratava do maior escritor português do seu tempo – criou naturalmente, entre os estabelecidos, resistências fortíssimas. Em 1933 um clerc da situação, Alfredo Pimenta, levanta no Diário de Notícias um libelo difamatório contra a tradução da poesia de Catulo, acusando o tradutor de plágio. Em virtude da campanha, o autor da tradução, Agostinho, perde a bolsa em Paris. Em 1942, a propósito dum número dos cadernos de Iniciação dedicado ao cristianismo, Manuel Múrias, primeiro no jornal Novidades e depois na Acção, levanta nova calúnia contra o autor, acusando-o de “comunista”, no que foi seguido por grande parte da imprensa católica. O coro de acusações chegou aos lugares mais recônditos do país e levou à prisão de Agostinho da Silva no Aljube e à sua saída para o Brasil. Em 1968, o reitor da universidade de Brasília, Caio Benjamim Dias, e o vice, José Carlos de Azevedo, da confiança dos militares, renovam as acusações e obrigam-no a traçar novo curso. Aos 84 anos, já em Lisboa, volta a enfrentar novo clerc da situação, Manuel Maria Carrilho, que o acusa de não ter obra própria que se possa sequer discutir.
Uma palavra final para o sistema crítico do texto aparecido no PÚBLICO. Quem o subscreveu sabe muito bem que uma biografia não é um género linear, como de resto nenhum género poético o é. Há pelo menos duas formas de entender a escrita duma vida: a histórica e a literária, muito distintas uma da outra. Se calou o assunto, capital para se fazer uma crítica compreensiva a qualquer biografia, não foi por ignorância. Foi para ser incompreensivo. Todo o texto está montado sobre uma ideia implícita de biografia – histórica – que ele sabe ser falsa. Se o esquema fosse verdadeiro as vidas de Eça de Queiroz eram nulas e as biografias de Raul Brandão e de Teixeira de Pascoaes não passavam de lérias. Ora o autor sabe muito bem que não é assim, se bem que nenhum deles, com excepção de Brandão, tenha feito qualquer investigação de arquivo. Como sabe também muito bem que eu pretendi escrever uma biografia literária sem poder esquecer todavia a vertente documental, já que sobre o meu sujeito pouco existia. Resolvi em arquivo – fontes dispersas e entrevistas inéditas – milhares de pormenores problemáticos e deixei honestamente alguns em aberto, todos de pouca ou nenhuma importância numa biografia poética. Qualquer ponto apontado no longo texto do PÚBLICO é irrelevante numa biografia literária. Quem é que acredita que numa biografia literária saber o que Agostinho da Silva fez no ano lectivo de 1928-29 dentro do liceu Gil Vicente – data cuja fixação me pertence porém – seja decisivo? Nem o Dr. António Araújo, que sabe muito mais do que diz.
O sistema crítico do Dr. Araújo não é inocente. Ataca todos os livros que vão contra o statu quo. E ataca-os em nome da História objectiva, certinha, sem uma falha. Não é só um defensor do sistema, é também um feroz guardião da Verdade. Como ele gosta de dizer: há a História, o lixo e Fernando Dacosta. Não podia pois aprovar um livro devotado a um homem que detestava a História – chegou a dizer que esta não era para estudar mas para inventar – e que simpatizou a fundo com a reforma agrária em 1975 (e apenas pela investigação deste livro se soube deste facto) – como só pôde detestar a História do povo na revolução portuguesa de Raquel Varela. É admirável que alguém ainda leve a sério a crítica de livros do nosso constitucionalista.
*biógrafo de Agostinho da Silva e autor do livro O estranhísimo colosso - uma biografia de Agostinho da Silva