A terra a quem se funde com ela

Terra é a oportunidade que Olga Roriz encontrou para voltar a centrar-se no corpo e no seu movimento, no lugar que ele ocupa no espaço e no tempo. A estreia é hoje no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

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SUSANA PAIVA
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No Palácio Palhas Pancas, em Santa Apolónia, em Lisboa, onde a Companhia Olga Roriz tem a sua casa, o palco é do tamanho de toda a sala. Para ensaiar a coreografia de Terra, os cinco bailarinos têm de aproveitar a divisão em todas as suas medidas, deixando a equipa que assiste e vai dirigindo os ensaios encaixada nas ombreiras das portas que dão para o jardim. Estão a um centímetro do espaço cénico e também eles vivem a experiência da terra – cai-lhes em cima, inspiram o pó que se levanta e sentem-lhe o cheiro. É uma experiência física, mas não tão extrema como a dos bailarinos, que no final dos ensaios têm uma lama de terra e suor agarrada ao corpo.

O cenário é só terra: uma cama que ao longo de cerca de uma hora de espectáculo se vai espraiando cada vez mais. A cada movimento, ora a pares, ora em trio, ou mesmo a solo, a terra é atirada pelo ar e é descontrolado o caminho que vai seguir. Terra é um momento de encontro com esta matéria, “uma viagem para gostar, para perceber o que é essa terra, para ter algum prazer com ela, para trabalhá-la até ao momento em que ela se funde com o corpo”, conta Olga Roriz ao Ípsilon.

Com este projecto, uma co-produção com o Teatro Nacional São João (TNSJ), do Porto, onde estará em cena no próximo ano, a coreógrafa quis afastar-se das suas produções mais narrativas, em que “há outras formas de comunicar, como o texto”. Quis fazer auma coisa puramente coreográfica em que dominassem o corpo e “o trabalho do espaço e do tempo” pelo movimento. “Depois de Cidade [2012], sentia falta de fazer, com a companhia, alguma coisa que contrastasse. Essa peça era mais teatral, era trabalhada do ponto de vista das personagens – a dança aparecia como necessidade de desenvolver uma cena ou situação. Achei que este tema era o ideal para trabalhar o movimento por causa desta relação corpo-terra: é a relação primária entre homem e o sítio de onde vem e para onde vai”, explica.

No CCB, o palco será muito maior do que aquele onde a Companhia Olga Roriz tem ensaiado, no seu estúdio. “A situação da terra vai ganhar mais força, o espaço torna-se mais árido e eles [os bailarinos] ficam mais perdidos. Isso é bom”, diz Olga Roriz. A passagem para o Grande Auditório do CCB implica ainda uma distância grande em relação ao público que, é claro, não poderia tocar na terra e cobrir-se com ela como fazem os bailarinos – mas poderia, se estivesse mais perto, ser cercado pelo cheiro do cenário e pelo pormenor dos movimentos, ou das caras cobertas de terra e ainda assim expressivas e cansadas, onde só se distinguem claramente os olhos abertos.

Olga Roriz acredita que, apesar da distância do público, o espectáculo vai resultar bem nesta sala, já que “a coreografia é muito preenchida de grandes movimentos”. Era isso que queria e foi nisso que apostou em todo o processo criativo: desde o início do trabalho, em Março, que os seus bailarinos sabiam que “aqui não haveria teatrices". "Nem uma linha de texto”, brinca a coreógrafa, que não partiu para os ensaios com uma ideia fixa daquilo que queria. Sabia apenas que queria a terra, o corpo e o movimento. “Sem teatrices”.

Viagem contínua

No camarim de Olga Roriz no CCB há uma espécie de actas dos ensaios, que se foram fazendo de improvisos até que as cenas ganharam forma, uma a uma, e se organizaram finalmente. Nesse caderno, as primeiras páginas têm escritas as propostas de improvisação que a coreógrafa levava para os ensaios e que depois se tornavam movimento nos bailarinos: “deslizar pelo chão”, “movimentos em repetição lembrando pássaros”, “dança com as mãos sobre a cabeça”. Para chegar a estes tópicos, Olga Roriz inspirou-se nos arquétipos da dança: “Quando a dança começou, não como forma de arte, mas na imitação dos animais e das plantas”. O resultado é uma coreografia em que, não se querendo fechar o sentido e as interpretações – uma função que cabe ao público, diz –, há uma viagem contínua que não se fragmenta em várias narrativas e que leva cinco homens civilizados ao seu estado mais primitivo de relação com a terra-matéria.

Nesta viagem, que aconteceu assim sem que essa fosse a intenção inicial, há conflito e exaustão entre os bailarinos, movimentos repetitivos e repetidos, o que não é uma característica apenas de Terra, nota Olga Roriz, mas sim de todo o seu trabalho. Em Terra, “o movimento, a agressividade e o confronto entre os corpos e entre o corpo e a matéria trazem um lado sexual": "A energia do impacto é muito sensual."

A terra enquanto tema permite, além de uma interpretação mais tribal também presente na coreografia, um lado mais cuidado ligado ao poder de criação. “No momento em que estão só as três mulheres há um olhar e um manipular da terra – elas pegam nela, põem-na na cabeça. Achei que isso fazia mais sentido só com as mulheres, pela sua relação mãe-útero-matéria-prima”, explica a coreógrafa, lembrando que isto foi instintivo e que acabou por fazer sentido, como muitas das opções que toma.

A música para Terra, que a coreógrafa seleccionou juntamente com João Raposo, encarregue da pós-produção áudio, é de Tchaikovsky, Ólafur Arnolds, Henry Torgue, Senking, mas também da dupla britânica Autechre e dos eslovenos Laibach. Para além destes, há ainda o som da terra – desta vez a terra-planeta –, gravado pela NASA no espaço. Quando ouviu a gravação, uma espécie de vibração, um tremer que parece vir do interior, Olga Roriz percebeu que teria forçosamente de entrar. É a música de um dos solos da coreografia: o som de uma espécie de terra grávida e agitada, que a qualquer momento cria raízes e germina.

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