A solo Nate Wooley tem vista para a intimidade

Um dos mais desafiadores trompetistas da actualidade chega a Portugal com três concertos (Lisboa, Coimbra e Porto) em que poderemos assistir à revolução pessoal em curso. O som do trompete, nas suas mãos, está a ser atraído pelo silêncio.

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A solo, como se apresentará na próxima semana em Lisboa (Zé dos Bois, dia 24), Coimbra (Museu Machado de Castro, dia 25) e Porto (Culturgest, dia 26), Wooley diz que toca como se “falasse sozinho no carro”. “Posso dizer aquilo que me apetecer a mim mesmo porque não há quaisquer ramificações para aquilo que digo ou penso em voz alta. Todos temos a experiência desses momentos em que estamos a sós e chegamos aos nossos pensamentos mais íntimos. Tocar a solo é, para mim, a versão musical dessa situação.” E por se permitir entrar despudoradamente pela sua intimidade e não ter de medir a cada segundo a relação com o outro nem de obedecer a qualquer código pré-estabelecido de convivência com terceiros, o formato solo é assumido por Wooley como aquele em que aborda de uma forma mais extrema as possibilidades sonoras do trompete. Sem a preocupação de poder melindrar alguém ou de ficar preso a um diálogo, as fronteiras vão lentamente caindo até dar lugar a uma imensa vastidão.

“Se acrescentasse outra pessoa a este cenário, seria falta de educação seguir caminhos tão íntimos”, compara. “Seria como falar sozinho estando outra pessoa ao meu lado – ela achar-me-ia louco ou simplesmente mal-educado por não estar disposto a escutá-la.” O mesmo olhar faz com que carimbe como “uma grande chatice” qualquer grupo em que esse pudor social não existe. Quando se trata de um ou mais músicos a despejarem uma torrente confessional fechando os ouvidos aos outros, a música está fadada a ser uma conversa surda, sem interesse.

“É também a única oportunidade para realmente tocar aquilo que sinto relacionar-se directamente comigo enquanto ser humano”, acrescenta Wooley sobre aquilo que está para lá do acesso à sua intimidade na música a solo. Ao referir-se à importância desta exploração solitária no desenvolvimento de um percurso pessoal, clarifica então que aquilo que perseguiu foi sempre uma linguagem que reconhecesse como sua. “E não digo isto necessariamente no sentido de ter de soar diferente de todos os outros trompetistas”, acrescenta, “mas sobretudo no sentido de se tratar de uma sonoridade com que me identifico, algo que seja tão pessoal quanto falar ou respirar, que seja muito humano para mim”. Só depois está em condições de transportá-la para outros contextos.

As revoluções
Foi essa investigação pessoal que o afastou, em primeira instância, da linguagem tradicionalmente tida como jazzística. Tendo crescido a ler com febril voracidade a revista Downbeat e a ouvir todos os discos de jazz que as mãos alcançavam, quando chegou à universidade Nate Wooley tinha já arrumado na adolescência o sonho de “ser um Charlie Parker”. Ao aperceber-se, gradualmente, de que os músicos que mais admirava, como Booker Little ou Bill Dixon, tinham reclamado o seu lugar na história do jazz através de uma abordagem inovadora, Wooley perguntou-se: “Mas como é que posso fazer o mesmo se ainda estiver preso à tradição do jazz?”. “É uma questão muito difícil e, especialmente nos Estados Unidos, pode ser muito delicada – se não se presta homenagem à tradição as pessoas zangam-se e irritam-se. Então senti que a melhor forma de procurar o meu caminho era deixar de me considerar um músico de jazz e nunca tocar jazz.”

A reconciliação com esse tremendo edifício da tradição sobre o qual construiu a sua linguagem aconteceu apenas com a formação recente do quinteto com que gravou dois álbuns para a portuguesa Clean Feed. Mas para isso teve de respeitar o tempo necessário para que a sua abordagem fosse já suficientemente robusta a fim de não ser tragada por uma normalização com o peso de décadas de história. “Quis esperar pelo momento em que pudesse fazê-lo de uma forma integrada, em que pudesse soar a mim mesmo enquanto tocava jazz e acrescentar algo. Mas é um grande peso com que tem de se lidar e nos Estados Unidos continuo a ser visto com um outsider, não estou no radar da imprensa do jazz convencional.”

A forma como Wooley ludibriou esse radar, na verdade, prende-se com uma das pequenas revoluções que o têm projectado em contínuos avanços na sua carreira. A primeira aconteceria ao tropeçar em Clark Terry, trompetista que “soava a algo completamente alienígena”. “Foi o primeiro momento em que pensei nas possibilidades de som do trompete, porque aquilo soava quase electrónico, era muito bizarro.” Mas o momento mais definidor do seu percurso deveu-se à adopção de um amplificador para transformar as notas do instrumento até – em exemplos extremos – territórios de uma densa abstracção. “Com o amplificador, o trompete tornou-se outro instrumento para mim”, confessa. “Não tinha pensado nisso até que o Peter Evans me disse que o trompete processado pelo amplificador é todo um outro instrumento. E isso mudou muito a minha forma de ver as coisas. Quer fosse por estar aborrecido ou por sentir demasiado os limites do trompete, o certo é que o amplificador ajudou-me mesmo a encontrar outro caminho.”

Agora que se apresenta em Portugal, apanhamos Nate Wooley em plena apreensão de uma nova revolução na sua música. De certa forma, está a regressar por inteiro ao trompete. Baseado nas composições para a sua série Syllables e na peça OCCAM X, composta para si pela experimentalista francesa Eliane Radigue, atravessa um processo de transformação do olhar sobre o instrumento “por via de pequenas mudanças, explorando o que pode ser feito a partir do som tradicional do trompete”. “Estou a tentar desenvolver uma linguagem mais silenciosa e que retira o tipo de fisicalidade do trompete a que estou habituado, que é sonante e forte.” As revoluções, já o sabíamos, podem ser silenciosas. Mas, no caso de Nate Wooley, empurram-nos para a descoberta dos sons que costumam ficar escondidos por trás da espectacularidade.

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