A riqueza dos cinemas do real no Porto/Post/Doc

Segunda edição do festival portuense abre esta terça-feira com uma secção competitiva de absoluto luxo, das memórias da família de Catarina Mourão à violência da guerra contra a droga no México.

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Cartel Land dr
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A Toca do Lobo, de Catarina Mourão dr

Vamos, por um momento, esquecer as dicotomias fáceis e olhar para o Porto/Post/Doc, em tempo de segunda edição, apenas pelo que ele é: um festival de cinema que se quer atento aos novos rumos do que se faz no documentário e áreas contíguas. Muito do que se vai mostrar desta-terça-feira a 8 de Dezembro no Rivoli e no Passos Manuel (com extensões pontuais ao espaço Maus Hábitos) não foi mostrado em Lisboa, sublinhando como a enorme riqueza dos cinemas chamados (à falta de melhor definição) “do real” é suficiente para alimentar dois festivais complementares. (E não estaremos a ser injustos se dissermos que o caminho trilhado pelo novo evento portuense é em parte possível pelos “riscos” abertos pelo DocLisboa ao longo dos últimos anos.)

Inevitavelmente, existirão sobreposições - como acontece este ano com a presença do díptico formado pelo último filme de Chantal Akerman, No Home Movie (esta terça 1, 22h15, Passos Manuel), e pelo notável documentário que Marianne Lambert dedicou à realizadora belga, I Don't Belong Anywhere (quinta 3, 10h, Rivoli); ou do último trabalho do veterano Frederick Wiseman, In Jackson Heights (terça 8, 19h, Passos Manuel). Mas algumas destas sobreposições permitem prestar a devida atenção a filmes que ficaram perdidos ou esquecidos nos programas de outros festivais.

É o caso de The Event, soberbo trabalho de montagem realizado por Sergei Loznitsa a partir de imagens recolhidas nos arquivos estatais russos (esta terça 1, 22h30, Rivoli, e sexta 4, 16h30, Passos Manuel). Apresentado fugazmente numa sessão especial no Doc, The Event é uma história visual da tentativa de golpe de estado de Agosto de 1991 através de material filmado por repórteres de imagem e documentaristas. As imagens das multidões nas ruas de Leninegrado (actual São Petersburgo) respondem ao anterior filme do cineasta (A Praça, 2014, sobre os eventos da praça Maidan na Ucrânia) mas ecoam também a Primavera Árabe, a praça Tahrir, os movimentos #occupy e afins – com vinte anos de antecedência.

E é também o caso do belíssimo A Toca do Lobo de Catarina Mourão (quinta 3, 15h, Rivoli, e domingo 6, 19h, Passos Manuel), fascinante objecto sobre a relação de um país (Portugal) com a sua memória, corporizada na investigação da realizadora sobre o próprio avô, o escritor Tomás de Figueiredo, e no modo como essa investigação revela linhas de sombra na história da sua família. A Toca do Lobo saiu de mãos a abanar do IndieLisboa 2015 e é um dos pontos altos de uma competição de alto nível, atenta aos cantos mais recônditos e desafiadores do cinema do real. Vários dos títulos fortes que vêem estreia entre nós no Porto, aliás, instalam-se de peito feito nas fronteiras formais do documentário.

Quem se recorda do dilacerante retrato vérité de uma China injustiçada perdida numa burocracia kafkiana de Petition, vencedor do DocLisboa 2009, poderá não reconhecer o seu realizador, Zhao Liang, no formalismo preciso e alegórico de Behemoth (quinta 3, 22h30, Rivoli, e domingo 6, 16h30, Passos Manuel). Oriundo da competição principal de Veneza 2015, é um tour de force visual sobre a sobre-exploração dos recursos naturais da Mongólia Interior em nome do progresso, misto de distopia materialista apocalíptica e meditação lírica sobre a natureza humana inspirada pela Divina Comédia de Dante e pela trilogia Qatsi de Godfrey Reggio. Behemoth está, contudo, em perfeita sintonia com o olhar sem complacências de gente como Wang Bing ou Jia Zhangke sobre as consequências humanas do “grande salto em frente” económico do colosso do Oriente.

Num outro registo, mais próximo dos grandes thrillers políticos americanos, encontramos Cartel Land (quinta 3, 16h30, Passos Manuel, e domingo 6, 22h30, Rivoli). O filme de Matthew Heineman - apadrinhado por Kathryn Bigelow, a realizadora de Estado de Guerra e 00:30 A Hora Negra – é, no entanto, um documentário nervoso e urgente, que debate a “guerra contra a droga” através do contraste entre duas milícias vigilantes. De um lado da fronteira, a Arizona Border Recon patrulha a linha entre o estado do Arizona e o México para impedir uma quimérica instalação dos cartéis em solo americano; do outro, as Autodefensas de Michoacán procuram congregar à sua volta os habitantes de zonas controladas pelos cartéis para os expulsar e retomarem uma vida normal. Filmado ao longo de mais de um ano, Cartel Land não faz julgamentos de moral, mas levanta questões apaixonantes sobre o significado da democracia e da justiça em zonas (metaforica e fisicamente) de “fronteira”.

Continuamos no México, mas de modo muito mais abstracto. Pablo Chavarría Gutiérrez pega no caso verídico de um activista injustamente acusado do assassínio de sete polícias em Chiapas e condenado a uma longa pena de prisão; em vez de contar o processo de Alberto Patishtán Gómez, contudo, Las Letras (esta terça 1, 19h, Passos Manuel, e sexta 4, 15h, Rivoli) filma as suas memórias do quotidiano rural em longos planos de steadycam, numa espécie de fantasmagoria experimental que evoca directamente o estetismo irredutível de Carlos Reygadas.

Por seu lado, o argentino Jonathan Perel propõe o rigor formalista mas não menos revelador de Toponimia (quarta 2, 15h, Rivoli, e sábado 5, 19h, Passos Manuel), exploração sagaz de quatro “comunidades planeadas” que o exército argentino construíu no estado de Tucumán entre 1975 e 1977 como tentativa de neutralizar as guerrilhas locais. Sem diálogo, música ou comentário, Perel alinha documentos, plantas, fotografias aéreas e esquissos que sugerem o “planeamento urbano” como prolongamento do regime; sobrepondo-lhe as imagens das quatro aldeias hoje, Toponimia torna-se num registo “antes e depois” do que o tempo, e a realidade, fizeram a Teniente Berdina, Capitán Caceres, Sargento Moya e Soldado Maldonado, num exercício fascinante (mesmo que árido) de “descubra as diferenças”.

Há mais a descobrir na competição portuense: como a paciente atenção com que a belga Lydie Wisshaupt-Claudel filma Marines americanos de regresso aos EUA entre duas rotações pelo Médio Oriente em Killing Time – Entre deux fronts (quarta 2, 22h30, Rivoli, e sábado 5, 16h30, Passos Manuel), filmando soldados a lidar com a vida real quando saem do emprego. Ou a meditação melancólica da grega Evangelia Kraniotou à volta das cidades portuárias, dos marinheiros mercantes e das mulheres da noite em Exotica, Erotica, Etc. (esta terça 1, 16h30, Passos Manuel, e sexta 4, 22h30, Rivoli), ensaio em tom atmosférico sobre a solidão afogada nos braços das “mulheres em cada porto” ou dos “gregos peludos” que fazem escala para nunca mais voltar. É, por onde se quiser ver, um programa de luxo.

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