A Revolução portuguesa explicada aos canadianos
O Processo SAAL: A habitação em Portugal de 1974 a 1976 é a exposição inicialmente apresentada no Museu de Serralves que agora chega ao Centro Canadiano de Arquitectura, em Montreal. É uma lição de História, e um repto para discutir a situação actual da arquitectura social no mundo.
Há os cartazes de cores vivas, bandeiras vermelhas e mensagens directas em palavras de ordem que fizeram história – “Morte ao capitalismo”, “Pelo direito à habitação”, “Esta casa é do povo”... Há uma banda sonora de fundo, com filmes e gravações desse tempo. E há a explicação didáctica e impressa a letras vermelhas – O Processo SAAL: A habitação em Portugal de 1974 a 1976, tudo sempre em francês e inglês, nesta cidade bilingue – daquilo que o visitante vai ver, com uma citação do arquitecto Nuno Portas – também presente na inauguração – a explicar como o Processo SAAL [Serviço Ambulatório de Apoio Local] foi fundamentalmente resultado da participação directa das populações.
Depois deste átrio, há mais seis salas da principal galeria de exposições do CCA dedicadas ao Processo SAAL, na sua diversidade de expressões entre o Porto e Lisboa, Setúbal e Algarve.
A inauguração oficial ocorreu durante toda a tarde desta terça-feira, com apresentações, discursos e visitas guiadas sempre muito concorridas, tanto pela imprensa local como, depois, por convidados institucionais, incluindo a comunidade portuguesa, representada ao mais alto nível pelo embaixador José Moreira da Cunha, e o público em geral.
Esta exposição é a transposição para Montreal, como desde o início estava previsto, da que foi apresentada no Museu de Serralves, entre Novembro do ano passado e Fevereiro. É também a primeira realização conjunta da instituição portuense com o CCA, no âmbito de um projecto desencadeado pela decisão de Álvaro Siza (o nome da arquitectura portuguesa que mais fortemente emergiu da experiência SAAL) de partilhar os seus arquivos com Serralves e a Gulbenkian, em Portugal, e com o CCA, que é actualmente a grande referência mundial na guarda, tratamento, divulgação e investigação na área da arquitectura.
Na apresentação da mostra, Mirko Zardini, director do CCA, explicou que esta revisitação daquele que foi “um momento histórico incrível, que simbolizou a transformação de uma sociedade, não é só História, antes uma lição para a arquitectura contemporânea”, para quem a faz, os arquitectos, naturalmente, mas também “para os responsáveis políticos e para a sociedade em geral”.
Em declarações ao PÚBLICO, Zardini justificou a apresentação da exposição no Canadá considerando que o conhecimento do que foi o Processo SAAL obriga a questionar “as actuais políticas de habitação social” em diferentes países, mesmo naqueles em que elas praticamente deixaram de existir, e “a encarar as estratégicas urbanas actuais de uma forma diferente”. É esta, de resto, a principal preocupação da actividade expositiva do CCA, que tem vindo a associar a arquitectura com o urbanismo, a ecologia e as diferentes formas e manifestações da vida urbana no mundo.
Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves, apresentou O Processo SAAL como “uma exposição inspiradora”, e lembrou, pela experiência vivida na sua apresentação no Porto, que ela resultou numa “descoberta para as gerações mais jovens e para o público de hoje” sobre o envolvimento das populações nos processos sociais e colectivos.
Ao PÚBLICO, Cotter disse também que a exposição inaugura uma colaboração com o CCA, que está ainda a dar os primeiros passos, mas que irá ter desenvolvimentos já na programação de Serralves do próximo ano – de resto, foi também para preparar esse programa, além da análise das modalidades do trabalho conjunto a partir dos arquivos de Siza, que a directora do museu se deslocou também a Montreal. Até porque, tanto nos domínios da arquitectura como das artes visuais em geral, “agora não há um centro, mas múltiplos centros por esse mundo fora, e a colaboração de Serralves com o CCA é um bom modelo para o actual mundo globalizado”, defendeu Cotter.
Delfim Sardo, comissário da exposição, desdobrou-se nos primeiros dias desta semana em entrevistas, visitas guiadas e explicações sobre a mostra que tinha adaptado, em colaboração com a equipa do CCA, para o novo espaço em Montreal. Além da necessidade de adaptação física a um espaço diferente e mais pequeno, o curador viu-se na necessidade de dar um contexto, que era absolutamente necessário para o público local.
“Em Portugal, toda a gente sabe o que é o SAAL, e mais ainda o que foi o período revolucionário e pós-revolucionário” que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. “Aqui foi preciso ser mais didáctico. Tive de escrever muito mais texto, com a preocupação de comunicar as circunstâncias políticas e económicas”, explica Sardo, mostrando-se satisfeito com o resultado, no final da inauguração. “Acho que consegui chegar a um ponto comunicante com o público”.
Sobre a expectativa quanto à recepção desta exposição num lugar tão distante da realidade de Portugal e da sua História, Delfim Sardo mostra-se também optimista: “O que vier, vem por bem”. Mas salientou que o simples facto de a exposição ser apresentada no CCA transforma-a num acontecimento que ultrapassa em muito a sua visibilidade local em Montreal. “Estive a dar entrevistas, ao telefone, para revistas norte-americanas e de Londres, e isso aconteceu porque a exposição está a ser feita no CCA, e isso muda logo o contexto e o seu reflexo – globaliza-o”.
A forte adesão da comunicação social local e da comunidade lusófona na tarde da inauguração permite acreditar que a exposição do Processo SAAL será também – e independentemente do tema – uma rara oportunidade de reencontro dos imigrantes com o seu país de origem. Isso mesmo foi transmitido ao PÚBLICO por Manuel Rodrigues e Clementina Santos. O primeiro, promotor imobiliário nascido em S. Pedro do Sul, mas a viver no Canadá há já mais de meio século, onde é também director do jornal A Voz de Portugal; a segunda, nascida em Alcanena e emigrada para Montreal há apenas oito anos, onde trabalha como conselheira cultural junto da comunidade lusófona.
“A exposição é uma porta para o nome Portugal entrar mais fortemente junto da comunidade canadiana e ser conhecido de outra maneira”, diz Manuel Rodrigues, lembrando a “imagem muito fraca” que o nosso país tem localmente, apenas como a terra de onde vem o vinho, o azeite, e agora também a pera-rocha, depois de uma disputa com importadores argentinos pela designação de produto made in Portugal”.
Clementina Santos, em serviço para a Rádio Centre-Ville, aposta no efeito de auto-estima. “Tudo o que vem de Portugal é importante para nós”, e diz acreditar que esta exposição sobre um período histórico marcante do país irá levar muitos imigrantes a “identificar e reconhecer, com grande emoção, muitos dos lugares” onde decorreu o SAAL.
O PÚBLICO viajou a convite do CCA e do Museu de Serralves