As previsões dizem que poderá continuar a ser referida como um “caso”, porque tendo sido o primeiro país latino-americano a ganhar nessa categoria (A História Oficial, em 1985), pode conseguir este ano aí o seu terceiro Óscar.
O buzz começou na competição de Cannes 2014 onde este conjunto de histórias de frustração, desigualdade social, mosaico que espectaculariza o desejo de vingança e de fazer explodir o mundo tal como o conhecemos – logo na primeira história, um complot que se revela num avião e que afectará os passageiros, e daí por diante é o mesmo, no episódio da empregada de restaurante que reconhece o homem que levou o pai ao suicídio, ou naquele da decoberta, por uma noiva e no dia do casamento, da infidelidade do noivo com uma das convidadas... – foi comparado ao Pulp Fiction de Tarantino.
A comparação é desajustada. O trânsito do norte-americano pelas histórias, a forma como manipulava o tempo, por exemplo, é infinitamente sofisticada, enquanto são fechados os “episódios” do argentino – mesmo que tematicamente etiquetados pelas mesmas palavras-chave. Mas compreende-se o desejo de escutar aqui os ruídos de pólvora, da catarse, da anarquia e dos explosivos, quando não mesmo esperar pelo sangue. No entanto, a música que talvez devesse aqui interferir em surdina, memória de coisa hoje distante, seria a do “filme em episódios” da comédia à italiana. Se nos lembrarmos dessa música, se nos lembramos de Os Monstros, de Dino Risi (1963), e da forma como falava da violência de tudo o que é humano, então mais definitivamente Relatos Selvagens se revela congelado.
Os Monstros, então: várias histórias, durações diferentes, algumas só esboçando uma personagem, um sentimento, ou a energia em desenvolvimento, sem dependência do plot ou da revelação de uma surpresa a fechar, e Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi a interpretarem as personagens principais. Exibicionismo? Não, antes o efeito de algo inaprisionável. O cinema podia abeirar-se e deixar-se invadir, mas nunca controlar a variedade, a extensão e a ferocidade da experiência humana – foi este, em suma, o “milagre” do cinema italiano do neo-realismo e daquilo que veio depois.
Era uma questão ética: o cinema irrompia da realidade, dos seus vícios e da sua fantasia, estava invadido por elas, e essa cumplicidade fazia o filme falar de todos, falar por todos – não lhe escapávamos.
Relatos Selvagens, pelo contrário, é um conjunto de curtas que procuram sempre o “imprevisto” (portanto, são previsíveis). E que desde cedo se apoiam no mecanismo para aí chegar, ao espectáculo. A “música” é sempre a mesma.
Não estão ali pessoas, mesmo que se possa ouvir em fundo o batimento cardíaco da sociedade argentina, o medo, a frustração, a crise, e que isso se escute como o som da música global de hoje; estão ali peças de uma máquina – o Duel de Spielberg, onde estava a luta de classes, o Vietname, a humilhação, foi transformado, no episódio do duelo entre um yuppie e um camionista, figuras sem passado, sem memória, num maquinismo oleado q.b. mas desalmado, a falar esperanto como na televisão (de resto, é assumido pelo realizador Damián Szifrón a influência de Twilight Zone – série de 1959-1964 e “versão” cinematográfica de 1983 – e de Contos Assombrosos, de Spielberg.) É uma questão de ética também: um artificial histrionismo, que ajuda a que nos distanciemos das misérias, dos vícios e da humanidade, que passam a ser coisas dos “bonecos” e não nossas, para montar um festim algo panfletário sobre “civilização” e “barbárie”.