No tempo em que não se olhava a despesas para adorar Deus
As cinco peças mais importantes da ourivesaria religiosa portuguesa do século XVIII reúnem-se no MNAA depois de uma investigação sobre a sua complexa história. Uma delas saiu pela primeira vez dos Açores no meio de protestos.
A diocese de Angra tinha anunciado que o Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres ia viajar para Lisboa para uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).
Quatro meses depois, este resplendor saiu de facto pela primeira vez dos Açores para integrar Spledor et Gloria: Cinco Jóias Setecentistas de Excepção, que se inaugura esta quarta-feira na Sala do Tecto Pintado do MNAA e se mantém até 4 de Janeiro – uma exposição pequena, mas que reúne “as mais importantes peças de ourivesaria produzidas em Portugal” na segunda metade do século XVIII, disse ao PÚBLICO António Filipe Pimentel, comissário da exposição e director do MNAA. É a oportunidade de conhecer as conclusões da investigação sobre como funcionava a produção destas peças nessa época e ver peças que nunca são expostas.
Depois de se percorrerem os corredores do museu em direcção ao centro do edifício, encontra-se a sala em que tudo o que reluz é ouro, prata dourada, diamantes, rubis, safiras, esmeraldas. São cinco peças de ourivesaria, quatro delas religiosas: a Custódia da Bemposta (MNAA), a Custódia da Sé Patriarcal (Sé de Lisboa), o Resplendor do Senhor dos Passos da Graça (Convento da Graça, Lisboa), o Resplendor do Senhor Santo Cristo dos Milagres (Convento da Esperança, Ponta Delgada), e o Hábito Grande das Três Ordens Militares, uma insígnia régia guardada hoje pelo Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa.
“Estas cinco peças iluminam-se entre si e são suficientes para explicar o processo" de concepção de uma peça de ourivesaria deste tipo "e os avanços científicos que fizemos”, explica António Filipe Pimentel. Esta é a “exposição zoom, exposição laboratório”, que completa o ciclo aberto por A Encomenda Prodigiosa, exposição que em 2013 se dividiu entre o MNAA e o Museu de São Roque.
A investigação começou com o restauro da Custódia da Bemposta, no ano passado, e da Custódia da Patriarcal, este ano, e está explicada ao pormenor num catálogo com referências a outras peças que fundamentam as novas conclusões sobre o tema. "É a história do final do século XVIII contada por estas cinco peças. As três que pertencem à Igreja não tinham estudos cientificos laboratoriais e historicos associados", explica Luísa Penalva, que co-comissaria a exposição juntamente com Pimentel e Anísio Franco.
Antes deste trabalho, “não estava muito claro” que “desenhar ourivesaria era uma coisa, fazê-la era outra”, continua Pimentel. “Quando se falava do arquitecto João Frederico Ludovice ser ourives, pensava-se que ele tinha uma oficina de ourivesaria. Não. Ele era ourives, mas não nesse sentido... Era desenhador de peças de ourivesaria.” A mão de Ludovice, que desenhou o Convento de Mafra, está nos desenhos originais do Resplendor do Senhor dos Passos e da Custódia da Patriarcal, que de facto tem a estrutura equilibrada e harmoniosa de um edifício em ponto pequeno: os seus alicerces trabalhados abrem espaço para as pequenas figuras simbólicas que estão no centro, como um pelicano, que bica o seu próprio peito para sangrar e alimentar os filhos.
Não foi, no entanto, a sua mão que talhou a peça. A produção estava entregue a uma das oficinas que proliferavam por Lisboa. Para além de Ludovice, Joaquim Machado de Castro (escultura da Custódia da Patriarcal) e Mateus Vicente de Oliveira (Custódia da Bemposta e resplendor açoriano) eram as figuras de topo no desenho de ourivesaria – hoje diríamos que eram designers sem produção própria.
No tempo em que não se olhava a despesas para adorar Deus – quando o poder do rei era legitimado pelo divino – do projecto inicial até á conclusão da peça podiam ir seis a sete anos, confirmou também este estudo –, trabalhos longos e delicados que faziam com que se estabelecessem várias oficinas em Lisboa para dar resposta a todas as encomendas da corte.
Para António Filipe Pimentel, foi particularmente difícil reunir estas cinco peças – apesar de serem apenas cinco –, especialmente porque três delas servem ainda hoje o culto: a Custódia da Patriarcal e os dois resplendores, “ligados a imagens de grande devoção”, lembra o director. “Não são peças fáceis de sair e nunca mais se voltarão a reunir”, vaticina.
De entre as cinco, o ex-libris desta dificuldade foi o resplendor açoriano. Não que isso tenha afectado as negociações com o MNAA, sublinha António Pimentel, mas é certo que a imprensa regional se desdobrou em artigos, textos de opinião, cartas de leitores contra e a favor do empréstimo da mais valiosa peça dos Tesouros do Senhor Santo Cristo – um movimento impulsionado pela Irmandade do Senhor Santo Cristo dos Milagres e a Congregação de Maria Imaculada, sendo o tesouro guardado na última.
O resplendor de 40 centímetros de diâmetro, que só sai do Convento da Esperança três vezes por ano, é “parte integrante de um conjunto de culto, que não se pode sujeitar a critérios e visões estritamente técnicas”, escrevia Joaquim Machado, cronista do Açoriano Oriental contra a viagem da peça. Carlos Faria e Maia, presidente da Irmandade, dizia que a saída era “um peso na nossa fé incalculável”. A madre superiora do convento acrescentava que “o que guarda o tesouro do Senhor Santo Cristo dos Milagres é a fé do povo açoriano” e que por isso levá-lo seria deixá-lo desprotegido. Para Carlos Faria e Maia, que o PÚBLICO tentou contactar sem sucesso, não estavam garantidas as condições de segurança para o transporte da peça, que volta definitivamente ao arquipélago no final de Outubro para uma festa religiosa. Aí vai ser vista por breves instantes, ao longe pela população, sem que se notem os elementos da eucaristia que tem desenhados ao centro, minuciosamente em pedras perciosas.
À frente do argumento da segurança aparecia sempre a fé e devoção do povo açoriano pelo seu Ecce Homo, mas o museu garante que este aspecto não é descurado: “Sabemos do seu valor material extraordinário, mas também temos uma alta sensibilidade do ponto de vista do seu uso e da sua vocação. Não há peças sem contexto”, diz Pimentel. Foi por isso que José Tolentino Mendonça, padre e poeta, foi convidado a escrever o texto de abertura do catálogo, onde explica que estas peças sumptuosas “sussurram-nos uma prece, colocam-nos uma questão inapagável”: a “interrogação de Deus”.