A montagem da literatura
A Relógio D’Água está a reeditar José Cardoso Pires. Até ao momento, saíram quatro livros: O Anjo Ancorado, O Delfim, Balada da Praia dos Cães e De Profundis Valsa Lenta. Entre os prefaciadores estão Mário de Carvalho, Gonçalo M. Tavares e António Lobo Antunes.
Ao lermos os seus livros, não podemos deixar de constatar a influência que, além da literatura norte-americana, o cinema teve na sua escrita. Um estudioso da sua obra como Alexandre Pinheiro Torres utilizaria mesmo a seguinte formulação: “Cardoso Pires coloca a sua câmara cinematográfica, volteando numa área determinada”, que exprime de maneira marcante a acção da escrita, rigorosa e impecável, de Cardoso Pires. Que isso não faça, no entanto, pensar em qualquer descritivismo que pudesse congelar a prosa num estatismo decorativo. Pelo contrário, o plástico sobrepõe-se ao descritivo, parafraseando outro analista (Liberto Cruz). O que implica que, em vez de impor uma visão, o escritor a sugerisse, a apontasse, para que a imaginação do leitor fizesse o resto. Sem cair no vago, estava especialmente interessado em “criar um clima, uma ambiência”, como disse.
José Cardoso Pires propunha “uma arte despida de demagogia e de sentido romântico”. O Hóspede de Job abre com uma descrição da aldeia do Cercal Novo que parece a demonstração prática desses pressupostos – “um clarim, uma igreja abraçada ao quartel, meia dúzia de casas ao correr da estrada”. A precisão da sua escrita era das que se mantêm ocultas por uma aparente facilidade, uma fluência que tem tanto de encantador como de ilusório na sua singeleza – aspectos para os quais Mário de Carvalho alerta no prefácio que escreveu para O Anjo Ancorado. E já Pinheiro Torres (que MC não deixa de recordar) falava de uma elementaridade que não o era realmente. Algo que o levou a descrever “a riqueza do elementar”, que é “a riqueza original duma linguagem paradoxalmente enxuta, despojada e na aparência pobre”. Pensemos nos faróis de um carro que “sulcam a estrada num rasgão macio sobre o asfalto”, em O Delfim, ou no “Tejo em mar de escama de prata”, de Balada da Praia dos Cães.
Este apego ao factual, chega ao rigor do documento, em O Delfim. Uma disposição que é parceira das listas, dos autos, constantes em Balada da Praia dos Cães. Ou no crescendo desta formulação – “Cães, criado e dona Mercês”, de O Delfim. A escala de valores desta “tapeçaria medieval” que é o romance, e que ele vai tecendo e desenredando, demonstra a ordem que a escrita impõe àquilo que é difuso e desordenado, a vida. A ilusão do presente, criada pelo livro, é dada, por exemplo, pelos tempos verbais – “como vou saber dentro de instantes” –, que manobram o estado da expressão, convocando os sentidos do leitor para uma actualidade que, antes de se esboroar, ainda se fixa. Como no cinema, de resto.
A investigação de um país
Cardoso Pires pronunciou-se desfavoravelmente em relação à capacidade dos seus confrades para fazer diálogos. Segundo o escritor, seriam raros os que conseguiriam conduzir o discurso directo de forma eficaz, ou sequer tolerável. JCP resolveu o dilema da seguinte forma: tornando as sequências dialogadas uma espécie de guião, na sua secura personagem fala, muitas vezes sem qualquer verbo introdutor do discurso, ou recorrendo ao discurso indirecto livre. Conhecedor profundo que era da coloquialidade, conseguia manusear essa técnica com rara elegância.
“E tudo está conforme os autos”, lê-se em O Delfim, como, em Balada da Praia dos Cães: “Os autos querem-se completos”. Os livros partilham um elemento investigativo, policial, que faz recordar aquilo que Eduardo Prado Coelho dizia sobre a obra de JCP – “quase todos os livros de Cardoso Pires nos surgem como histórias policiais”. Algo que se poderia articular com o que aquele ensaísta designou, estudando a obra de Cardoso Pires, por uma “atitude semiológica generalizada”. No sentido em que os seus livros promovem uma leitura atenta – mas nada reverencial – da linguagem do mundo. Se em O Delfim o escritor narrador é um detective com uma espécie de procuração, ou obediente a um protocolo da narrativa, Elias Santana, dito Covas, o chefe de brigada, é, realmente, um investigador de pleno direito. Ambas as personagens investigam, no fim de contas, um crime. E não deixam de investigar o habitat de cada um. Num caso, o “condado apócrifo da Gafeira”, como lhe chamou José Cardoso Pires, no outro, uma Lisboa salazarista e parda, medida em contrastes bem firmados com locais como Elvas. Para J. Cardoso Pires, o que mais interessava em O Delfim era “a destruição dos mitos portugueses”. A Gafeira e o microclima da lagoa mais não são do que a miniatura, a “tapeçaria medieval” a desenhar um país em desagregação. Há símbolos que impõem a sua força no manto da narrativa. É o caso do fumo, que se intercala com a neblina da lagoa. Elementos significadores de mistério e de modificação de estado, de uma agitação prefiguradora de uma alteração de fundo. “O Delfim”, segundo José Cardoso Pires, em Memória Descritiva (E agora, José?, 1977), “segue uma trajectória nebulosa que, por muito que me pese a mim e ao tolerante leitor, ainda é, sabe-se lá, a única permitida pela topografia local”. Balada da Praia dos Cães é tanto o repositório meticuloso de uma investigação, como o retrato – quase involuntário, de tão contido – de um país manietado. A figura magistral de Covas, a gincana em que entra o elenco mais ou menos restrito das personagens, as tensões distribuídas por uma estrutura compassada por marcas textuais como relatórios, missivas, notas e outros desvios, compõem um retrato complexo, tudo menos linear ou directo, do país de então.
Peripécias de uma balada
Balada da Praia dos Cães, publicado em 1982, foi adaptado para cinema pelo realizador José Fonseca e Costa, num filme de 1987, por cujo argumento foi co-responsável. Em 2002, Fernando Lopes lançava a sua adaptação de O Delfim, romance de 1968, que contou com argumento de Vasco Pulido Valente.
“O Zé Cardoso Pires”, diz-nos Fonseca e Costa, “era uma amizade muito antiga, da altura em que eu, ainda muito novo, tive a intenção e a vaga possibilidade de um financiamento para se adaptar ao cinema um romance dele que, no entender de muitos críticos literários, marca uma espécie de ruptura com o neo-realismo.” Esse livro é O Anjo Ancorado. A história que rodeia esse projecto de rodagem envolve, como explica o cineasta, a primeira leitura que José Fonseca e Costa fez daquilo que viria a ser O Delfim. Juntamente com José Cardoso Pires e Luís de Sttau Monteiro, e beneficiando do conhecimento que este último possuía da costa alentejana, o realizador partiu para Sines, com o objectivo de trabalhar no projectado filme. Foi numa pensão daquela localidade alentejana – “as coisas eram diferentes nessa altura” – que Cardoso Pires lhe estendeu o manuscrito, o conjunto de folhas dactilografadas, precisa o realizador. “Aquilo era uma coisa extraordinária. Porque era O Delfim, só a história do casal. Não metia ainda o jornalista a investigar. Estávamos em 1959, 60, agora veja o tempo que o Zé levava a escrever qualquer coisa.” Como é sabido, o filme não se fez, uma vez que o financiamento, que iria ser dado por “um dos donos do Cinema Império”, não se concretizou. Anos depois, José Fonseca e Costa voltou a contactar o escritor para adaptar para cinema Balada da Praia dos Cães. “Fiz uma primeira abordagem”, conta, “praticamente só transcrevendo as acções do livro, sem toda a parte literária que ele tinha, para assentar ideias. O livro baseava-se numa história verídica, e nós conhecíamos as personagens.” As peripécias que rodeiam os momentos iniciais do trabalho de adaptação são, em si mesmas, de um detectivesco irresistível. Com trabalho de campo, investigação, vigias e entrevistas com as partes envolvidas. Conforme nos revela Fonseca e Costa, o escritor preparou-se exaustivamente, tendo falado com detença com as individualidades que estiveram na origem das personagens masculinas de Balada da Praia dos Cães, Dantas, Fontenova e Barroca, mas terá deixado de fora o elemento feminino. Ou assim parece. O realizador esclarece-nos acerca do modus operandi de JCP, por via do qual uma camada de mistério se deixava sempre pousar em todos os actos e confidências que ele fazia. José Fonseca e Costa, esse, para usar o chavão, “procurou a mulher”. Os elementos que colheu, nas conversas que acabou por manter com ela, ajudaram a enriquecer o seu retrato de Mena. A situação familiar e extra-conjugal da personagem – duplamente personagem, por sinal – constitui um enredo que é quase uma infra-estrutura para o guião de Balada da Praia dos Cães. Embora esses acontecimentos não tivessem passado, nem para o romance, nem para o filme, informam a criação das personagens, em especial da parte da película.
Por contingências da produção do filme, houve que fazer uma co-produção com Espanha. “Arranjo um dos melhores escritores de cinema que havia em Espanha nessa altura, um homem do Uruguai, um romancista muito conhecido, chamado Antonio Larreta.” O uruguaio viria a ser um dos intervenientes no guião, juntamente com Shawn Slovo, que fora assistente de Martin Scorsese e Robert de Niro. No fim, Fonseca e Costa tinha em mãos não um, mas três guiões: em inglês, castelhano e português. Até obter o resultado final que conhecemos do seu filme.
Tudo começa pelo espelho
Vasco Pulido Valente assinou o guião de O Delfim, que Fernando Lopes realizou a partir do romance de José Cardoso Pires. Pulido Valente conheceu Cardoso Pires, foi seu amigo. O primeiro contacto deu-se na juventude de VPV – “Conheci o José Cardoso Pires muito novo, quando tinha 17 ou 18 anos, numa revista de que ninguém se lembra, mas que era muito, muito boa, que era o Almanaque. Trabalhei lá com o Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Sebastião Rodrigues, João Abel Manta. Tudo gente com muita qualidade. Pessoas que, colectivamente, me ensinaram muito.”
JCP descreveu claramente as intenções da publicação: “O programa era simples: ridicularizar os provincianismos culturais, cosmopolitizados ou não, sacudir os bonzos contentes e demonstrar que a austeridade é a capa do medo e da ausência de imaginação.”
Pulido Valente descreve a relação com o escritor como um percurso que se iniciou na admiração, mas que se encaminhou para a amizade. Sem deixar de louvar o artista – “O José Cardoso Pires foi o maior prosador português do século XX, incluindo todos os outros.” –, descreve uma pessoa de grande dedicação e lealdade, “um homem que não falhava às pessoas”. VPV fala de O Delfim com inegável apreço, embora admita não o considerar o melhor romance de Cardoso Pires. Esse reconhecimento reserva-o para outra obra – “O meu romance preferido é O Anjo Ancorado, que eu acho quase perfeito. Não sei se os senhores da Faculdade de Letras permitem que se use a palavra, mas eu acho que, tecnicamente, era quase perfeito.” Mário de Carvalho, por seu turno, no prefácio que escreveu para a nova reedição do livro, falou de uma “capacidade mágica de ocultar processos e artifícios”.
O conhecimento com Fernando Lopes também era anterior à colaboração com o realizador em O Delfim. VPV recorda o “guião em 12 episódios”, encomendado pela RTP, nos anos 80, e que não viria a ser aproveitado. “A série chamava-se O Cordeiro de Deus. Era sobre uma das guerras civis de Portugal.” Vasco Pulido Valente lembra a acção de Fernando Lopes e os benefícios dos seus ensinamentos – “Eu inventei uma história, fiz o guião, mas com o Fernando Lopes. Ele ensinou-me como é que se faziam guiões, se quiser. Foi-me ensinando, como é que isso se fazia. Foi por isso que ele se lembrou de mim. Ele já tinha pedido o guião a várias pessoas, e achava que não conseguia filmar aquilo. Eu disse que sim. Começámos a trabalhar juntos no dito guião de O Delfim.”
Vasco Pulido Valente recorda um trabalho “agradável, do primeiro ao último dia”, mas não isento de dificuldades e contratempos. Desde logo, a natureza enganadoramente simples do livro – “O Delfim é um romance complicado para pôr em cinema. Aquilo é uma sucessão de elementos que se cruzam e entrecruzam, de insinuações e de alusões. É muito difícil. Outras pessoas tinham tentado seguir o texto…” Falando acerca do seu trabalho enquanto guionista da película, descreve os momentos iniciais do processo e o caminho que havia de seguir – “O que eu disse logo ao Fernando [Lopes], depois de ter dito que sim e de ter vindo para casa reler o livro, foi que, se ele estava a pensar ter uma grande fidelidade ao texto, eu achava que não fazia. Claro que não fazia porque pensava que não era possível essa fidelidade ao texto, ou construir sobre o texto equivalências completamente arbitrárias.” Tendo em conta as especificidades da linguagem em causa e o caso de José Cardoso Pires, a sua singularidade literária, explica – “O que eu fiz foi contar a história como se fosse contada pelo Hemingway. Estreitinho, muito sóbrio, muito ligado à… só ligado à acção. Sem tentativa nenhuma para passar a outra parte do romance. De outra maneira, não dá…. Porque não se filmam ideias. A única coisa que se pode filmar são actos, a única coisa que é filmável é a acção.” Essa colagem à força motora dos acontecimentos, a uma escrita que se define pela recusa de floreados leva-o a afirmar: “O melhor [do filme] é a parte em que se seguiu a acção, e até se inventou acção. Personagens para sustentar a acção, que não apareciam, ou eram secundaríssimas no livro. A parte em que eu fiquei frustrado com o guião foi esta: eu escrevi aquilo com muito cuidado no diálogo, como, aliás, o Zé fazia, e o Fernando tinha uma ideia com que eu nunca concordei, que se devia deixar improvisar os actores. As improvisações que ele deixou entrar estragaram um ou dois grandes momentos do filme. ”
“No meio de toda a liberdade que tomei em relação ao romance, tentei sempre ser fiel ao José Cardoso Pires. Tentar manter quase integralmente todos os diálogos no filme. Quando precisava de diálogos que não estavam no livro, andava sempre a ler tudo o que ele tinha escrito. Tinha os livros todos dele ao meu lado, numa mesa. De modo que lia, lia, lia, e tentava arranjar, numa aproximação claramente arbitrária, mas que me dava um certo sossego, situações parecidas e usar diálogos dele, mesmo que fossem doutro livro.”
“Tudo começa pelo espelho.”, diz-nos Gonçalo M. Tavares, falando a propósito do filme. “De imediato, dessa forma, Fernando Lopes diz: isto é um filme, não é um livro. O espelho como símbolo máximo da imagem – fundador da imagem enquanto objecto; uma máquina antiga de reprodução. Não é por acaso que a pintura, a fotografia e o cinema estão cheios de espelhos. A descrição pela linguagem do que acontece no reflexo dos espelhos é a que mais falha. No espelho está o limite da linguagem. A linguagem não chega lá. Imagem e espelho, espelho e imagem. São irmãs.” Acrescenta, ainda, comparando os dois objectos artísticos: “O filme tem a exactidão do livro. Imagens sem adjectivos excessivos. O grito de Tomás, depois de descobrir o corpo morto do criado na sua própria cama, sinal de terror por ter tocado e acariciado um cadáver julgando ser a sua mulher que ali estava, e sinal, ao mesmo tempo, de desonra – tocar no cadáver é tocar no adultério, é a prova macabra e material do adultério. E o grito de terror que resulta, então, desta dupla aparição medonha, esse grito de Tomás da Palma Bravo que se prolonga por vários segundos – o que num filme é muitíssimo – não se vê, apenas se ouve. Fernando Lopes mostra outros planos, outras imagens, enquanto o grito – o essencial – irrompe e se prolonga. Nada é mostrado duas vezes.” “O mesmo acontecimento”, resume, “não é visível e audível no mesmo momento – eis a forma seca como Fernando Lopes filma, fazendo justiça (uma bela justiça) à forma seca como José Cardoso Pires escreve.”.