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“A esperança tem de ser a primeira coisa a morrer”

Através da Chuva também é uma descida profunda em busca do coração (no caso, a palanca negra gigante), como no livro de Joseph Conrad. Miguel Gullander conversou sobre essa ideia de matar a esperança para nos dar de viver.

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Enric Vives-Rubio

Aos 20 anos, um acidente de automóvel deixou-o em coma durante uma semana e as marcas dessa experiência ainda hoje se sentem na forma como encara a vida e a escrita. Essa experiência, a meditação vipassana que faz há duas décadas, a filosofia zen que pratica – traduziu para a Assírio & Alvim Folhas Caem, Um Novo Rebento, do monge japonês Hôgen Yamahata (“Foi uma experiência muito importante para mim, durante dois anos, porque também fiz muita meditação zen”) –, tudo isso está reflectido em Através da Chuva, o seu novo livro, seis anos depois de Perdido de Volta.

Mais do que um livro desesperançado, Através da Chuva é um romance onde nunca houve esperança a que juntar prefixo de negação. No centro de tudo está Svart, criptozoólogo sueco (Gullander é filho de mãe sueca e pai português), cooperante dos anos 70 que esteve mais de 25 anos em coma. Ao acordar para um mundo que não compreende, Svart lança-se na busca da palanca negra gigante, animal simbólico que se dizia extinto, o único grau de pureza num mundo fétido onde a morte e a extinção, mais do que presentes como nuvens negras, são desejadas como único descanso.

Pelos caminhos da Luanda dos musseques, das prisões, do submundo da droga, da pequena corrupção como forma de vida e do desrespeito pela existência humana, Gullander cruza a falsa religião messiânica com anti-heroísmo negríssimo num fatalismo onde o amanhã não existe e mesmo o hoje não é garantido que se cumpra. Dir-se-ia um O Coração das Trevas contemporâneo, com a palanca negra gigante no lugar de Kurz e um Kurz mercenário sul-africano, antigo actor pornográfico, como braço-direito de um “brigadeiro-e-bispo” que sonha criar um canal de televisão para difundir a maior das imagens bestiais, uma bomba obscena que seja o princípio do fim. Através da Chuva podia resumir-se recuperando Conrad e o seu Kurz: “o horror, o horror”.

Através da Chuva é o seu O Coração das Trevas?

É uma descida profunda em busca do próprio coração, sem dúvida. Quando estava em Angola e me mostrei interessado em ver a palanca negra, disseram-me uma frase, que depois incluí no livro: “Segue o coração, quando se intersectam os pontos de uma cruz sobre o mapa deste país, o coração dessa encruzilhada acerta justamente no território da palanca negra gigante; aí deves procurar a pegada em forma de coração”. Ou seja, um coração dentro de um coração que, provavelmente, salvará o próprio coração. Foi o que me disseram e se tornou importantíssimo nessa minha busca de uma coisa absolutamente importante e absolutamente terrível.

De certa forma, o Kurz de Conrad é aqui a palanca negra?

Em certa medida é, o Kurz é essa figura mítica que abarca em si mesmo todas as expectativas e os excessos mais terríveis; existe uma fragilidade, uma pureza, algo incompreensível, uma linguagem que nós, enquanto humanos, não entendemos, e há uma busca de entender este outro e de ir ao encontro deste algo desconhecido. E, na tentativa de chegar a esse tal desconhecido, tornamo-nos desconhecidos para nós mesmos.

A existência real da palanca negra gigante acaba por causar mais problemas do que se ela estivesse extinta e fosse apenas hoje um símbolo, um mito?

No fundo, esse é que é o grande problema – existe mesmo. Toda a gente me dizia que já não existia, mas eu decidi procurar, fazer um avistamento de algo que fosse realmente uma questão de fé, que me mudasse para sempre. Foi essa impossibilidade que me excitou. Quase tudo o que nos dizem que não conseguiremos alcançar, que não conseguiremos ter, que não existe, afinal só o próprio medo nega.

Recorda-se bem do dia em que viu a palanca negra gigante?

Muito bem, foi um dia extraordinário e ficou oficialmente registado naqueles famosos Palanca Reports do Pedro Vaz Pinto que são publicados continuamente na Internet. O que eu vi foi algo a 70 metros de distância, a correr entre o arvoredo, e tive a sorte de ter os peritos à minha volta para provar que eu não tinha visto algo impossível. Mas é óbvio que a palanca se torna mais importante como objecto simbólico, de pureza e de sacralidade.

Tinha escrito nas minhas notas que este livro reflecte essa ideia de que nos entregamos tanto ao cinismo que já somos incapazes de aceitar a existência de um qualquer grau de pureza...

Exactamente, perdermos o desejo de pureza é a maior perda de todas; perdemos a existência da própria alma humana. É essa busca que nos torna humanos. Só o medo nos impede de viver vidas apaixonadas. As grandes descobertas são sempre encontradas na diferença, e a pureza representa essa grande diferença que temos de encontrar nas nossas vidas tão urbanas, tão mesquinhas, tão cínicas. Qual seria a piada dos Descobrimentos se tivéssemos ficado pelos Açores?

É curioso que aquilo que afirma não se encontre neste livro, onde não há qualquer espaço para a esperança.

Esse é o primeiro grande passo, fundamental, para que uma pessoa acorde na sua própria vida: tirar-lhe totalmente a esperança. É uma pessoa acordar diante do abismo. E, como diz Nietzsche, quando se olha para dentro do abismo, o abismo olha para dentro de nós. E nessa contemplação damo-nos conta da dimensão universal da miséria e do sofrimento em que estamos metidos. E talvez isso nos dê a vontade, a energia, a força e o entusiasmo para querermos dar o salto em direcção ao desconhecido, em direcção a algo que não é comprável, não existe nas lojas, não dá para ver pela Internet e é uma descoberta própria de cada um. A esperança tem de ser a primeira coisa a morrer na nossa vida.

Ao fim de 15 anos a viver em África, acha que no continente há esperança?

Eu não tenho esperança em coisas de pacote, tenho esperança em indivíduos que entendam no seu íntimo que espaços existem para a transformação séria, para a alteração fundamental da nossa perspectiva de existência. Microeconomias: eu acredito nas coisas à pequena escala, não acredito em grandes revoluções, nem em grandes transformações. Trabalho homem a homem. Acredito na literatura porque está nas mãos de uma só pessoa para ser lida por um par de olhos e tocar num coração.

No fim do seu poema em cinco movimentos, Kalunga, escreve: “E quando acordares verás tudo pelos meus olhos. Verás este mundo/ como eu o vejo. E chorarás. Muito, muito./ África.” A verdade é que naquilo que escreve parece não haver lugar se não para dor e sofrimento.

O choro e as lágrimas têm uma dimensão que não é de pena e compaixão. Se uma pessoa não sentir na sua própria pele o que à sua volta as pessoas estão a sentir, não estaremos a fazer um trabalho sério. Fechadas num apartamento com ar condicionado, nos Hummers, nas piscinas, a viver essa vida e a acreditar neste progresso mal-amanhado, nas teorias do desenvolvimento e essas palhaçadas todas que nos são vendidas como pacotes de esperança, nunca terão a oportunidade real de se sentir pessoas. Enquanto não apanhar aquela doença, não vou descobrir a sua cura. Eu tenho de sentir isto na pele, de sentir isto a correr-me no sangue, de chorar essas lágrimas e, então sim, terei a capacidade de entender o que deve ser feito.

Pratica a meditação vipassana, traduziu filosofia zen... Essa capacidade de encarar a realidade como ela é vem daí?

Obviamente que me deixa ver as coisas como elas são e não como gostaria que fossem. A maior parte de nós vive uma vida de fantasia a pensar como é que as coisas deveriam ser, a criticar tudo e a apontar o dedo. A mensagem principal da técnica de meditação vipassana é aceitar a realidade como ela é. E só depois teremos a capacidade de lidar com a realidade de uma forma equânime. A meditação vipassana e a meditação zen são o oposto do escapismo, pregam-nos ao chão e a partir dali observamos a tempestade à volta desde o olho do furacão. Nós julgamos que a maneira como queremos as coisas é a melhor, esse foi um dos problemas da cooperação em África, julgar que sabia o que era melhor para aquelas pessoas.

As críticas aos agentes europeus de desenvolvimento que levam para a África a sua ideia de desenvolvimento é recorrente em vários escritores e intelectuais que pensam sobre o continente. Tem sido tão má a cooperação internacional em África?

Eu não vejo uma divisão entre as pessoas que estão em África, na Europa ou no resto do mundo. O que vejo é um motor de desenvolvimento errado, tanto aí como aqui. É um problema sério, como aconteceu em Portugal, o de comprarmos certos conceitos de desenvolvimento. O problema não está nas pessoas, nos continentes ou na cor delas, o problema está no produto vendido e nas suas consequências para a sociedade – quando temos uma noção de desenvolvimento em que o crescimento tem de ser imparável e a replicação das coisas em quantidade tem de ser sempre de seta para cima, estamos com um problema a nível global.

Tem a ver com essa noção que dominou o século XX quase como dogma, a de que todo o progresso é bom.

O principal problema é acreditarmos que existe algum progresso. Não houve progresso psicológico absolutamente nenhum, não estamos mais espertos nem melhores do que os indivíduos de há dois mil e tal anos. O que houve foi um acumular de conhecimento tecnológico que permitiu que fizéssemos umas máquinas extremamente espertas; paralelamente, conseguimos criar um grau de destruição tremendo no sítio onde temos de viver. Isto não vai em linha recta para lado nenhum; na verdade, funciona em círculos – plantamos, colhemos. E não nos damos conta de que estamos a plantar sementes de limão com a esperança de amanhã termos morangos.

Falando da sua forma de escrever, disse que o acto era como “navegar no mar à noite, tendo apenas um raio de 25 metros de luz diante do holofote e uma estrela – uma visão do rosto da Deusa – como referência, e apesar de não ver o caminho, continuar a avançar”. Ainda continua a escrever assim?

No caso deste romance já não usei a mesma técnica que usei no Perdido de Volta. Tive mesmo de fazer uma investigação estruturada, elaborar uma sinopse, criar uma espinha dorsal, porque queria que o livro fosse muito honesto. No entanto, obviamente que vou criando uma cartografia para a viagem consoante vou avançando. Gosto da escrita de risco, em que escrevo o que vi e o que senti mesmo na carne. Sempre gostei muito do Tomé da Bíblia, porque sempre achei que é o mais honesto de todos os discípulos, aquele que põe o dedo na ferida para comprovar. Gosto dessa literatura perigosa, que mata e que salva. E acho que devemos arriscar a vida por aquilo que nos apaixona – a mim, escrever apaixona-me. E dá outra autoridade descrever uma prisão quando o próprio já lá esteve dentro.

É por isso que vai continuar em África?

Não sei ao certo para onde vou, acho que toda esta deambulação em que tenho andado é uma e a mesma viagem, o próprio viajar representa o objectivo em si. Atravessar esta vida, esta experiência partilhada de estarmos juntos neste mundo estranhíssimo, sabendo que nos falta algo de importante que tem de ser procurado e encontrado. Quero transmitir isto nos meus livros, esta urgência: a tua cabeça arde como uma tocha em chamas, o que fazes perante isto? Acordaste de um coma, como é que vais aproveitar os teus últimos dias? Tem de haver uma dimensão de busca dentro de nós.

O protagonista deste livro sai do coma ao fim de várias décadas, entretanto o mundo e a forma de pensar mudaram bastante, o politicamente correcto instalou-se... Criou-o para poder dizer tudo de uma forma bruta e honesta?

Queria um indivíduo que sai de outro mundo e, de repente, é confrontado com uma estranheza tal que não consegue resistir. O facto de ser mais velho, de não ser lusófono, de ser verdadeiramente estrangeiro permite-lhe contrastar, exaltar-se, sofrer tremendamente com coisas que diríamos normais. E não são nada – muitas das coisas que estamos a viver tornaram-se normais, mas não são nada naturais. Quando uma pessoa acorda de uma coisa assim, já não há espaço, nem tempo para mais palhaçadas. Não há amanhã.
 

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