Quando o Presidente da República, interpelado pelos jornalistas, fala para os microfones e para as câmaras de televisão, é difícil tomar atenção às suas palavras – seja para louvá-las, seja para criticá-las – porque a elas se sobrepõe de maneira enfática o medium corpóreo não verbal: os traços móveis do rosto, o movimento da boca, os lábios encrespados, a disposição do corpo. O significado das suas palavras dissolve-se na mímica facial intensificada e nos aspectos prosódicos do seu discurso (a entoação, o ritmo, os picos de intensidade, etc.) Mas não se trata da gestualidade retórica dos políticos, um dos elementos que lhes conferem aquele quid a que Max Weber chamou carisma. Não, não é gestualidade retórica: é eloquência patética. Chamo eloquência patética aos traços móveis da face, à parte dinâmico-motora e plástica do rosto e do corpo que ganham um enorme valor expressivo e se oferecem imediatamente à interpretação. Sempre que fala, seja sobre o milho ou sobre a Grécia, o Presidente da República faculta imensa matéria para uma fisiognomonia e quase nenhuma para a interpretação e o comentário políticos, apesar de haver ainda gente ociosa que insiste nessa tarefa. Muito dificilmente encontramos hoje, na retórica política, a aristocracia da máscara, com origem na sociedade de corte, maliciosamente astuta e enganosa, própria da grande comédia. A comédia transformou-se há muito em farsa e a máscara aristocrática tornou-se uma máscara trivial. Nestas circunstâncias, o povo, os cidadãos, os espectadores, o eleitorado, como lhes queiramos chamar, até passou a preferir as razões do coração, da sinceridade e da espontaneidade. E foi isto que os políticos passaram a tentar imitar, o que, em termos de arte e espectáculo, é nulo e quase sempre um desastre estético e moral. Mas a eloquência patética do nosso Presidente nada tem a ver com as transformações e falsificações desta máscara. É patética porque se manifesta como um espasmo de exteriorização de uma causa interior. Dir-se-ia, na sua mímica intensificada, que ele não é patrão dos seus gestos, do seu olhar, da sua expressão. E, por isso, torna-se transparente, não consegue travar o mau-humor nem controlar os arrebatamentos de homem severo, não consegue mascarar as suas paixões nem desmentir o coração. Falta-lhe o requinte da máscara astuta e suscita intensamente a reflexão fisiognomónica, até em leigos, como eu tenho o dever de me declarar. Pouco mais sei sobre esta matéria do que isto: as presunções hermenêuticas da fisiognomonia têm a sua origem no momento em que Sócrates pediu a Cármides: “Fala, para que eu te possa ver”. Ora, é isto que se passa com o nosso Presidente: ele fala, mas nós já só conseguimos vê-lo. Passando da análise fisiognomónica para a semiótica médica (mas sou tão ignorante em ambos os assuntos que receio entrar no domínio da iconologia política, onde me sinto mais treinado) diria que o seu rosto se tornou uma facies hippocratica, isto é, um conjunto de traços reconhecíveis como sintomas e indícios. Tendo chegado a este ponto perigoso, devo manter uma regra de prudência, renunciar à “ciência” de autodidacta e evitar comparações indevidas, como aquelas que neste momento alguns leitores já estão a fazer entre o Presidente Aníbal Cavaco Silva e um famoso presidente chamado Daniel Paul Schreber, contemporâneo de um muito célebre cientista vienense (cujo nome ninguém me obrigará a pronunciar, para não trazer a peste para o interior desta crónica), esse sim, sumo pontífice nestas matérias tão sensíveis.
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