A dúvida do herói Sully

Boa parte do filme é isto: o "herói" a conviver com a dúvida sobre si próprio, apoquentado pela possibilidade de o seu "heroísmo" ser menos uma questão de "facto" do que de "lenda", quer dizer, de fraude

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A Tom Hanks o envelhecimento trouxe uma gravidade e uma sobriedade que não se adivinhariam no tempo de Forrest Gump
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A Tom Hanks o envelhecimento trouxe uma gravidade e uma sobriedade que não se adivinhariam no tempo de Forrest Gump

Sobre o caminho do facto à lenda, e sobre o bem mais deprimente trajecto de regresso da lenda ao facto, já versavam vários dos últimos e mais desconsolados filmes de John Ford. Sempre a questão do "heroísmo", num país que institucionalizou, para não dizer que sacralizou, a figura do "herói" como elemento essencial duma mitologia em permanente construção.

Na sua obra, Clint Eastwood andou várias vezes por aí, interrogando a natureza do "heroísmo" e os seus contornos frequentemente trágicos (como em Bandeiras dos Nossos Pais), interrogando a natureza da "lenda" e do seu carácter potencialmente fraudulento (como em Imperdoável) - quase sempre numa mistura de crença e cepticismo que é uma das fontes da complexidade dos seus filmes em geral.

Ultimamente, e pense-se num filme como o precedente American Sniper, o cepticismo parece ter baixado a guarda para deixar em relevo a crença, ou mais ainda uma vontade quase desesperada de confirmar a crença. A crença, para o dizer simplesmente, na possibilidade de se encontrar, nesta América do século XXI, uma figura de "herói americano" que seja tão genuína quanto simbolicamente inquestionável, e de ser o cinema a fabricar essa "inquestionabilidade", como a América dos anos 1930 e 1940 ainda podia e sabia fazer, em filmes como Young Mr Lincoln de Ford ou o Sargento York de Hawks.

Exprimindo-o com maior ou menor violência verbal, Clint terá ficado realmente surpreendido com o ricochete provocado por American Sniper. Tanto assim que Milagre no Rio Hudson parece a resposta "pacifista" a esse filme: em vez de um atirador furtivo, um piloto de aviação comercial, notabilizado não por matar mas por salvar vidas.

É a história de Chesley Sullenberger (Tom Hanks), o piloto da US Airways que numa manhã de Janeiro de 2009 amarou o seu Airbus com ambos os motores avariados no rio Hudson, com a destreza suficiente para que não se perdesse nenhuma das 155 vidas que, entre passageiros e tripulantes, seguiam a bordo. Um "herói", portanto, como todas as televisões e jornais, e através delas todos os nova-iorquinos que com ele se cruzam, imediatamente aclamam. Mas o que faz o osso do filme, e o impede de ser apenas um panegírico (chega-se lá, mas o caminho não é uma passeata), é precisamente a questão da dúvida, da "dúvida do herói". No inquérito ao acidente, os investigadores (ainda que, como é sugerido, apenas por motivações obscuras relacionadas com os interesses das seguradoras), colocam a hipótese de Sully não ter tomado a melhor decisão e de todas aquelas vidas se terem salvo não por causa dele, mas apesar dele. E boa parte do filme é isto: o "herói" a conviver com a dúvida sobre si próprio, apoquentado pela possibilidade de o seu "heroísmo" ser menos uma questão de "facto" do que de "lenda", quer dizer, de fraude.

Acidente no rio Hudson: A pessoa certa, na altura certa, no avião certo

Tom Hanks, a quem o envelhecimento trouxe uma gravidade e uma sobriedade que não se adivinhariam no tempo das irritantes correrias de Forrest Gump,  nem nas múltiplas e insípidas personagens de "homem comum" que depois interpretou , incorpora este peso surpreendentemente bem, com uma intensidade minimalista e quase "crepuscular" que têm que fazer deste Sully uma das suas melhores presenças de sempre. A personagem falhava e o filme também falhava (o que nos volta a fazer pensar no que seria American Sniper com um protagonista mais, digamos, "rico" do que Bradley Cooper).

Mas também há questões de construção narrativa bastante interessantes: afinal, o núcleo da acção, o curto voo entre o aeroporto de LaGuardia e a superfície do Hudson, durou pouco mais de dois minutos. E esses dois minutos, numa estrutura que usa a repetição de forma bastante criativa, são vistos e revistos por variadíssimas vezes, nos mais diferentes pontos de vista: dentro do "cockpit", na cabine com os passageiros, pelos olhos das testemunhas em terra, nas incontáveis simulações de computador geradas pelos investigadores, na melhor sequência do filme pelo ponto de vista "sem vista" (só comunicações rádio e pontinhos no radar) do controlador de tráfego aéreo.

Claro que tantas imagens de aviões de passageiros a rasarem a silhueta de Manhattan evocam fantasmas bem específicos de determinado Verão, o de 2001. Começa-se por lá, aliás, numa primeira sequência que vemos como "reconstituição" e afinal se revela "pesadelo", capaz de acordar em sobressalto o angustiado Sully. Mais à frente, uma frase dita por alguém ("há muito tempo que Nova Iorque não tinha tão boas notícias, sobretudo com aviões") sugere que, para o idealismo "comunitário" praticado por Clint neste filme, o "milagre do Rio Hudson" podia ser uma espécie de catarse do 11 de Setembro, e as imagens do Airbus praticamente intacto a flutuar serem imagens capazes de substituir, na recordação colectiva, as imagens desse famigerado dia, como se tudo pudesse voltar a ficar bem - portanto, ainda uma questão de "crença".

Milagre no Rio Hudson está longe da pujança, da tensão, da intensidade dramática, do maior e mais complexo cinema de Clint Eastwood. Mas é facilmente o seu melhor filme desde Gran Torino.

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