Na edição do passado dia 30 de Maio do Ípsilon, o historiador Diogo Ramada Curto assinalou a publicação do livro Pensamento Crítico Contemporâneo (organizado por nós e editado pelas Edições 70) com um conjunto de observações em que se destaca o alerta para os “riscos e impasses a que os exercícios de filiação política e de posicionamento ideológico podem conduzir a academia”. No seu comentário, Ramada Curto denuncia ainda o que considera ser a tentativa de legitimar um “novo idealismo”, a este contrapondo a necessidade de “pôr o dedo na ferida, através de uma prática analítica e empírica que parta de problemas e que não se reduza a nenhum modelo” ou “livro de receitas baseado em teorias pré-construídas”. Respondemos-lhe em virtude da consideração que a sua atenção nos merece, mas também porque encontramos na polémica um interesse maior: o do debate público sobre as relações entre ciência, crítica e política. A pertinência destas questões é indiscutível e o debate em seu torno será tanto mais esclarecedor quanto menos se afaste do livro que lhe serve de pretexto.
1. Infelizmente, as considerações tecidas sobre esta obra colectiva dizem sobretudo respeito às três páginas da introdução, tendo as 396 páginas seguintes merecido menos atenção. É compreensível que a heterogeneidade que caracteriza um livro escrito e organizado a várias mãos dificulte a tarefa de um leitor interessado em sintetizar tão rápido quanto possível o teor de um debate cujos protagonistas, pontos de partida e configuração lhe parecem a priori criticáveis. Mas nem por isso perderia o seu comentário em acutilância o que recuperaria em rigor se os ensaios que compõem o livro (de autores de diversas gerações, campos disciplinares e orientações políticas) fossem objecto de um juízo menos superficial, uma vez que o pressuposto de que existiria um “programa em que convergem organizadores e autores do livro” facilmente se veria esconjurado por uma leitura atenta. Desde logo, aplicar o epíteto de “progressista” aos diferentes autores investigados neste livro elide o facto de a própria ideia de “progresso” ser aqui matéria e terreno de disputa.
Teria evidentemente sido possível construir outro livro — não sem afinidades com este — com outro escopo, outra organização, outra amplitude cronológica. Por exemplo, um livro que fosse organizado em torno de um único problema colocado no centro da reflexão contemporânea e não obedecendo a uma arrumação por autores. Aliás, na introdução dizemos estar “cientes de que esta arrumação é ainda herdeira de um culto do indivíduo enquanto autor — e da autoria enquanto individualização — de cuja nostalgia saberemos um dia libertar-nos”. Recusamos contudo os termos em que Ramada Curto situa a questão, contrapondo “uma preferência pelas especificidades de autores individuais” ao seu próprio interesse pelo que designa como os “domínios concretos de objectos sociais e de problemas sociológicos e antropológicos”. Desde logo, nos debates a que, ao longo dos últimos anos, sujeitámos o pensamento destes autores, estão presentes não poucos objectos sociais e outros tantos problemas sociológicos, antropológicos, mas também políticos. Para mais, uma arrumação temática não nos colocaria ao abrigo de outros riscos, nomeadamente o que é identificado por Ramada Curto quando menciona “a obsessão de delimitar territórios para a pesquisa” própria de programas de investigação subordinados “às solicitações dos chamados processos racionais de tomada de decisão em áreas de políticas públicas”.
De resto, é Ramada Curto que usa Michel Foucault como bandeira, alegando que na nossa introdução ter-nos-emos desviado da justa interpretação do verdadeiro sentido do seu pensamento. Trata-se de uma acusação que não temos grande vontade de rebater, nem mesmo perante a insólita conversão do autor francês num historiador dedicado ao estudo da “longa duração”. Uma vez que não se nos afigura satisfatório substituir uma lógica de barricadas por uma lógica de trincheiras, a discussão destas questões passará acima de tudo pela sua reconsideração noutros termos. Estamos mais interessados nos nexos entre saber e poder que nos convidam a manter uma relação problemática com categorias como “verdade” e “autoridade”.
2. Ao contrário do que parece ser o caso de Ramada Curto, consideramos com extremo cepticismo a possibilidade de um discurso científico impermeável a elementos políticos. Falemos de realidade, claro, mas não ignoremos que os nossos posicionamentos políticos, sendo formados pela realidade, são também o que medeia a sua percepção. Por exemplo, embora não seja determinante única ou principal, a diversidade de tradições interpretativas não é de todo estranha à circunstância de, na hora em que pretendem aproximar-se da realidade, alguns se dirigirem ao estudo das relações económicas e sociais, outros acabarem inquirindo a vontade política dos indivíduos e outros ainda sondarem as mentalidades e aquilo a que chamam cultura.
Não dizemos, sublinhe-se, que o discurso científico e o discurso político se confundem em absoluto, mas que um trabalho de reflexão e intervenção crítica deve considerar as múltiplas zonas de intersecção entre um e o outro. E, mais do que aspirar a um conhecimento científico tão puro quanto inalcançável, preferimos aprender a lidar com os vícios e as virtudes desta intersecção. Neste sentido, o nosso entendimento do pensamento crítico leva-nos a procurar romper com um entendimento reverencial das ideias e dos pensadores discutidos, que faria deles os senhores de uma doutrina que nos caberia aplicar, mas também com a ilusória possibilidade de um tratamento puramente objectivo do seu trabalho. Enfim, preocupa-nos tanto o risco de nos convertermos em cães-de-guarda de quaisquer doutrinas político-filosóficas, quanto o de nos tornarmos cães-de-guarda de uma concepção positivista da ciência. Aqui onde nos procuramos situar, vemos o dogmatismo ideológico e o neutralismo científico como duas faces de uma mesma moeda cujo valor se nos afigura extremamente duvidoso.
De resto, e uma vez que Ramada Curto nos relembra o perigo de atribuir a certas palavras propriedades mágicas, capazes de dispensar quem as emprega de uma argumentação mais substancial em torno do seu sentido e do seu uso, importa sublinhar que a repetição de termos como “concreto”, “analítico” ou “empírico” não o coloca a salvo de um entendimento supersticiosamente cristalizado da realidade, nem o subtrai ao risco de investir os rituais científicos de uma dimensão religiosa permanentemente acossada pelos riscos de profanação que a rodeariam.
Detectamos aliás no comentário de Ramada Curto uma postura algo defensiva do espaço académico tal e qual como se encontra, a par de uma certa indisponibilidade para um debate que convoca, desde logo, uma prática de exigente autorreflexividade. Não deixa de ser caricato que os organizadores deste livro, na sua quase totalidade investigadores precários ou desempregados, sejam acusados de assumir uma “estratégia de vitimização” por Ramada Curto, que vem ocupando uma notória posição de poder no campo das ciências sociais. Caricata é também a redução deste livro a uma “rememoração de vários autores na moda”, quando muitos deles estão arredados dos catálogos das editoras e dos currículos universitários.
3. Quando mobiliza os lugares-comuns da necessidade de nos dirigimos à realidade e de abandonarmos o terreno especulativo que imputa à filosofia, Ramada Curto não faz mais do que naturalizar o que entende ser uma prática científica correcta. Por exemplo, ao afirmar que o tratamento que o livro concede às ciências sociais se limita “quase exclusivamente” a quatro figuras (excluindo, entre vários outros, autores como David Harvey, Jürgen Habermas ou Frederic Jameson), converte numa evidência indisputada o seu ponto de vista particular sobre o que são as ciências sociais.
No domínio concreto que é este livro, semelhante postura tem o inconveniente de tratar todas as abordagens, metodologias e práticas discursivas das quais se prescinde como se fossem simples equívocos, seja por não corresponderem ao mesmo entendimento do que possa ser a prova ou a demonstração, seja por situarem as suas estratégias de análise e interpretação do real noutros planos, que se veriam assim simplesmente remetidos para o domínio da não conformidade. Como se, ao se afastarem do tratamento dos objectos sociais autorizado, num dado momento e lugar, por determinada configuração dos campos historiográfico, sociológico ou antropológico, essas abordagens se tornassem simples manifestações de um gosto idealista pelo raciocínio abstracto. Foi também contra a pobreza inerente a semelhante concepção do conhecimento que organizámos este livro. Para que as possibilidades de interpretar o mundo e de o transformar não se vejam abruptamente reduzidas a um modo limitado de praticar as ciências sociais, ou sequer às próprias ciências sociais.
O nosso entendimento da crítica situa-a no ponto e no momento em que se torna imperioso questionar a autoridade de um diagnóstico, não para lhe contrapor um outro, simetricamente oposto, mas para abrir o real às múltiplas possibilidades de interpretação e intervenção que ele abriga. Se alguma coisa caracteriza o pensamento crítico, será a recusa da tautologia segundo a qual as coisas são o que são — e é muitas vezes sob as bandeiras do “concreto” e do “empírico” que o discurso científico cristaliza o real, elidindo as suas contradições e a sua historicidade, convertendo-o em fatalidade. Não se trata, da nossa parte, de pensar as ideias num circuito fechado sobre si mesmo, mas antes de as usar como pontos de entrada para questionar a evidência do que é ou não é possível. É nesse questionamento que vemos a melhor possibilidade de ultrapassar uma noção acanhada do presente.
É próprio do pensamento crítico contemporâneo expor-se aos rigores da crítica; é nosso desejo que esta seja suficientemente exigente consigo própria para não ceder à tentação de criticar o seu objecto simplesmente por aquilo que ele não é.
Associação cultural
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