A banda pára de tocar e Jô Soares entra no palco. Enquanto trauteia uma música, passa por Pilar del Río e Chico Buarque, sentados lado a lado na primeira fila da plateia na cerimónia da oitava edição do Prémio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, segunda à noite, em São Paulo, e solta a piada: "Não sei se eu digo alô, ou se eu digo oi hoje."
A sala riu. "Onde é que está o Bava?", perguntou, já sentado, o humorista e também escritor, e pelo sofá branco passaram naquela noite o presidente executivo da Portugal Telecom, Zeinal Bava; a presidente da Fundação Saramago e viúva de José Saramago, Pilar del Río, a escritora Nélida Piñon, uma das grandes amigas do Nobel da Literatura português que ali foi homenageado.
Foi, aliás, Pilar del Río que, no palco, abriu o envelope com o nome do vencedor do prémio, no valor de 100 mil reais (42.416 euros), e disse: "Toda a vida quis fazer isto." E leu: "O primeiro prémio é para Leite Derramado, Chico Buarque." Em segundo lugar ficou a obra Outra Vida, de Rodrigo Lacerda (que recebeu 35 mil reais, cerca de 15 mil euros), e em terceiro Lar, de Armando Freitas Filho, que por indicação médica não esteve presente na cerimónia (15 mil reais, 6300 euros).
Um papo sério
Quando Chico Buarque subiu ao palco para receber mais um prémio por este seu livro - sexta-feira foi-lhe atribuído o Prémio Jabuti de Ficção também em São Paulo - e se sentou também no sofá branco, Jô Soares avisou que ia ser um "papo sério", mas não cumpriu. "Sou meio responsável por esse prémio porque eu falei se o Chico não ganhar, eu não vou lá." Foi quase como se fosse um regresso. Há 20 anos, Jô Soares levou o escritor Chico Buarque - que publicava o seu primeiro romance, Estorvo - ao programa que tem na TV Globo e que recriou na cerimónia com a sua banda. Em Leite Derramado o narrador é Eulálio, um centenário que, deitado numa cama de hospital, conta às enfermeiras, ao médico, aos maqueiros e à filha a história da decadência da família. Um monólogo delirante, pontuado por momentos de humor, e por onde passa a história dos últimos dois séculos brasileiros.
O papo entre Jô e Chico começou com uma pergunta fatal: "Será que o Fluminense [clube de futebol] ganha este ano?" Chico tinha ido ver o último jogo no estádio novo e foi "um sofrimento". Passaram então para as perguntas que Soares considerou quase óbvias: "Como é que você transa o tempo do escritor e aquela coisa que eu sei que você não gosta muito de fazer que são os shows?", perguntou Jô Soares, que lembrou que num tempo de concertos o encontrou mal da garganta. "Eu só de saber que vinha aqui subir ao palco já fiquei com dores de garganta. Divido radicalmente o meu tempo de escritor, que é só dedicado à escrita. Não faço nem escuto música, o violão fica fechadinho no estojo. Quando acabo o livro dá uma saudade de fazer música de novo. Que bom que é a música! Agora cheguei aqui e tive vontade de subir [ao palco]. Quando não tem que subir, dá vontade de subir."
E lá se falou de A Banda, a canção que virou sucesso em 1966. Chico contou que uma das suas filhas estava em Copenhaga, ouviu a canção e disse que tinha sido criada pelo seu pai. Responderam-lhe que não, que era folclore. "Nessa altura é quase domínio público! [risos]"
Muda a conversa: "Quatro romances, dois premiados", diz Jô. Chico é obrigado a corrigir: quatro romances, três premiados. "Você ainda se considera um escritor amador?", pergunta Jô Soares. "Eu não, mas as pessoas me consideram. [mais risos] O que é bom porque, como eu fico um bom tempo sem escrever, fazendo só música, quando eu volto não sei mais escrever. É trabalhoso, mas você não fica com aquilo que num cavalo se chamaria o calo da vitória. A mão está destreinada, você tem que pegar a mão de novo." As pessoas, muitas vezes, lêem um livro de ficção sem dissociar o narrador da pessoa pública, continuou Buarque. "Tem essa coisa que contamina a leitura e fica uma certa prevenção contra o escritor que não é escritor em tempo integral porque ele faz isso como um hobby. E fica sempre essa ideia de que o livro vende porque é de um apresentador de TV ou porque é de um cantor." Quando o escritor regressou à plateia de prémio na mão, ouviu-se a banda de Jô tocar, adivinhem lá: "... Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor."
Para terminar, Jô Soares quis passar um excerto de uma entrevista que Saramago lhe deu em tempos com a mensagem: "Melhor que amai-vos uns aos outros, seria respeitai-vos uns aos outros. Mas infinitamente melhor. Seria a palavra de ordem que deveríamos ter na mente e no coração... tatuada até."
Um abraço a Portugal
É que a noite foi também de homenagem ao Prémio Nobel da Literatura 1998, José Saramago (1922-2010), que com Caim estava entre os dez finalistas mas foi retirado da lista a pedido da Fundação Saramago. A escritora e membro da Academia Brasileira de Letras, Nélida Piñon, que foi uma das grandes amigas do escritor português, contou a Jô Soares que o conheceu antes de ele "ter essa glória, esse nome", mas já tinha "esse pensamento de grande escritor, a maneira original de olhar o mundo, singular". Nessa época, disse Nélida, José tinha "uma imaginação então contida mas que se sentia que era fervorosa".
Quando o excerto do filme José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes - que já se estreou no Brasil e irá para as salas portuguesas na próxima semana -, encheu os dois ecrãs da sala, o público reagiu emotivamente. Jô Soares perguntou a Pilar del Río o que achou do filme, ela respondeu que adorou e brincou: "Gostei das interpretações." Lembrou que é um "filme cheio de vida" e que mostra que, apesar de estar doente, José Saramago trabalhava todos os dias e apoiava os outros estando presente quando achava necessário, apesar da idade. "Estava em todas as causas e em todas as coisas e nunca nada lhe foi indiferente. E isso vê-se neste filme", disse Pilar del Río, que levou consigo um Prémio de homenagem para José Saramago. No final, Zeinal Bava considerou que esta homenagem marcou "um momento importantíssimo na história do prémio" e ter Chico Buarque como vencedor deu "ainda mais prestígio" a um prémio que já tem oito anos. Para o escritor, este prémio para a língua portuguesa significou "um abraço a Portugal e também aos demais países da língua portuguesa", disse, respondendo a uma pergunta do P2, no final da cerimónia.
A jornalista viajou a convite da Portugal Telecom