A arquitectura modernista não é só para admirar: é mesmo para usar
O movimento moderno ainda não acabou e é uma orientação para o futuro. Num seminário em Lisboa, a Docomomo, o comité internacional que estuda a arquitectura do movimento moderno e que tem sede na capital portuguesa, mostrou como reutilizar a aquitectura modernista é caminhar na direcção de cidades mais sustentáveis.
Dentro deste arco temporal, não se pode esquecer, por exemplo, a igreja Sagrado Coração de Jesus (1962-1965), dos arquitectos Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira, “um espaço cheio de perspectivas, cinematográfico”, como descreve a arquitecta Ana Tostões. Lisboa está, aliás, cheia de “obras especiais”, continua a presidente desde 2010 da Docomomo, o comité internacional que estuda a arquitectura do movimento moderno e que tem sede na capital portuguesa desde 2014.
Para somar à inauguração da sua sede no IST, a Docomomo organizou ainda uma tarde de conferências na sexta-feira, no edifício da Fundação Calouste Gulbenkian, também ele um projecto modernista de Ruy Athouguia, Pedro Cid, Alberto Pessoa e Viana Barreto Ribeiro Telles. No seminário internacional Reabilitação e Re-uso da Arquitectura do Movimento Moderno estiveram arquitectos como o holandês Wessel de Jonge ou o chileno Horacio Torrent e ficou clara a necessidade de ir além da preservação dos edifícios modernistas: é preciso reabilitá-los e dar-lhes novas funções para presente, mesmo que para isso seja preciso alterá-los — “a arquitectura é algo que tem vida própria, é susceptível de ser transformada”, afirma Ana Tostões.
“Tradicionalmente os edifícios eram construídos para a eternidade, mas um dos ideais do movimento modernista era a dinâmica e uma abordagem funcionalista: o edifício constrói-se com uma função. Se essa função desaparece, o edifício torna-se desnecessário. Porquê ter um edifício com um tempo de vida superior ao que essa função requer? Seria um desperdício de dinheiro”, explica ao PÚBLICO Hubert-Jan Henket, fundador da Docomomo.
Re-uso
Nos anos 1980 este arquitecto foi confrontado com a vontade de preservar o Sanatorium Zonnestraal, na Holanda — um hospital do início dos anos 1930, desenhado por Johannes Duiker e entretanto abandonado. Este e outros casos eram para ele uma “contradição filosófica”: construídos para terem um tempo de vida limitado, edifícios como escolas ou fábricas estavam a ser chamados à eternidade. “Era preciso conservá-los por causa da sua beleza, da forma como representam uma maneira de pensar. O que é um paradoxo, se pensarmos que foram criados para um uso específico e para depois serem eventualmente demolidos”, continua.
Assim nasceu, em 1988, a Docomomo, acrónimo para documentação e conservação do movimento moderno. Este comité foi constituído na Holanda e desde então tem-se expandido para todo o mundo — conta agora com 70 países e com investigadores de áreas tão distintas como a história da arte, urbanismo ou o cinema e a fotografia. Para além de promover e apoiar a reabilitação e reutilização do património arquitectónico moderno, quer mostrar como as bases deste movimento continuam actuais: “a arquitectura tem uma missão social e deve criar espaços onde a comunidade viva melhor — este ideal moderno é importante para fazer a arquitectura do futuro”, diz ao PÚBLICO Ana Tostões, acrescentando que “o processo moderno ainda está em curso”.
Foi por causa desta necessidade de dar resposta aos problemas dos cidadãos no mundo actual que houve uma viragem nos anos 2000 na maneira da Docomomo olhar a preservação da arquitectura modernista, explica Henket. Com o crescimento da população mundial e as alterações climáticas, é necessário tornar as cidades mais sustentáveis, o que implica moderar a construção e dar novas funções ao que já existe. Re-uso veio impor-se à mera preservação.
Ana Tostões dá um exemplo simples: o que fazer com todos os cinemas que foram o grande programa do século XX na Europa, e que depois da segunda guerra se tornaram obsoletos? Agora que há cinemas em qualquer lado, o que se faz com os velhos? Nesta actualização de espaços antigos há que não ter medo de mexer no original e acrescentar algo novo, defende a arquitecta. “Não podemos ficar presos aos ícones como eram, porque eram tão bons, mesmo que já não sirvam para nada. As alterações acrescentam valor.”
Hoje não é preciso, como nos anos 80, convencer a sociedade de que a arquitectura modernista deve ser preservada, diz o fundador da Docomomo: “Pelo contrário, é preciso convencer as pessoas de que podem usar estes edifícios no dia-a-dia, para que a cidade seja mais sustentável”, acrescenta acerca da Europa e da América do Norte. “Na China é completamente diferente: destrói-se e faz-se novo”, lembra Henket.
“Construir de raiz não é necessariamente importante. O que interessa é ter espaços que nos inspirem e que nos dêem um sentimento de pertença à comunidade. Obviamente, cada geração quer deixar uma marca, mas é possível fazer isso com edifícios que já existem”, diz Hubert-Jan Henket sobre o trabalho de preservação e reabilitação — “altamente criativo”, para Ana Tostões.
Exemplos de como estes projectos também deixam uma marca foram aqueles que Eduardo Souto de Moura apresentou no seminário. O arquitecto partiu em todos eles de ruínas, que são também um edifício moderno, defendeu. “São o estado moderno de um edifício antigo. Olho para as ruínas não como no ideal romântico de contemplação, mas como um espaço aberto, disponível”, explicou. Em 1980, projectou uma casa de habitação a partir da ruína de uma celeiro, no Gerês — optou por manter visíveis as pedras do edifício antigo, que começavam já a misturar-se com a natureza. O resultado foi uma construção em boa parte envidraçada e que parecia emergir da serra — hoje está abandonada e vandalizada.
Nos anos 1990, fez a adaptação do Convento de Santa Maria do Bouro, em Braga, na altura degradado. Para erguer uma pousada decidiu fazer “um edifício moderno com pedras antigas”, disse o Pritzker de Arquitetura de 2011. “Tive que inventar tudo: um mosteiro não é facilmente um hotel de cinco estrelas, ao contrário do que se pensa. Como é que ia fazer os quartos fingindo que já eram assim?”.
Para juntar o que restava do antigo à função e necessidades do novo — a legislação impõe regras apertadas para que um edifício possa ser um hotel de 5 estrelas, como ter ar condicionado ou uma piscina — escolheu ir mudando de linguagem ao longo do edifício. Isso lembrou-o de como no início da sua carreira “era um radical” que se foi moderando: “Achava que o velho era velho, que o novo era novo, como se a pedra não fosse universal e as catedrais góticas não estivessem cheias de ferro.”