A Amazónia salva das águas

1. O  terceiro taxista com quem falei disse que aquela chuva toda era vontade de deus, eu disse que era culpa do homem, ele rematou:

— E o que é que vamos fazer?

Mas pelo menos levou-me ao Museu de Etnologia, coisa que não fizeram os dois primeiros na praça de táxis de Belém, o primeiro porque dizia que não sabia onde era, o segundo porque dizia que claro que o primeiro sabia, não queria era ir lá por ser uma corrida curta. Lisboa devia ponderar a importação de taxistas do Rio de Janeiro como terapeutas dos taxistas de Lisboa. Além da simpatia, que é quase amor, são veteranos desta chuva.

2. Na véspera, o director do museu, Joaquim Pais de Brito, avisara-me de que andavam a acartar baldes de água. Quando o taxista crente em deus me largou frente ao museu, chovia como na véspera, e o pote colocado no átrio já estava cheio. Seguindo pelos corredores, havia de facto um balde e recipientes compridos. “São bacias de revelação fotográfica”, explicou Pais de Brito, desolado. Aproveitaram o que tinham à mão para conter a água das goteiras espalhadas pelo museu. Há 15 anos houve obras de ampliação, mas a tela dos tectos tem aberto frechas onde se concentra a água, que vai corroendo o material. Em alguns pontos há já buracões no tecto. O mais grave é chover nas reservas. Só a da Amazónia, aberta ao público mediante visita guiada, até agora escapou.

3. Pais de Brito conta que quando António Hespanha era presidente da Comissão dos Descobrimentos, e lhe perguntou o que seria possível fazer com o Brasil no museu, surgiu a ideia de uma exposição sobre índios. Aconteceu em 2000 e chamou-se Índios, Nós, com a colaboração de antropólogos brasileiros e vários tribos.

— A participação dos índios foi muito importante.

Mais de 200 peças foram reunidas para o efeito, mas havia muitas mais para mostrar. Disto resultou, em 2006, uma galeria nos subterrâneos do museu dedicada à Amazónia. É por isso que Pais de Brito diz:

— Vou à frente porque aqui são as tripas.

Descendo, descendo.

4. Abre-se uma porta trancada. Da escuridão lampejam olhos, saias de palha, máscaras xamânicas. Quando as luzes se acendem nas vitrinas, é toda uma fileira encarando quem entra. Estamos perante um vestígio dos Wauja, tribo do Xingu onde o antropólogo brasileiro Aristóteles Barcelos Neto passou meses, e de onde trouxe uma colecção para o Museu de Etnologia. Basicamente, esta galeria da Amazónia cruza duas grandes colecções, a de Aristóteles entre os Wauja do Xingu, recente, e a que o viajante e etnólogo autodidacta Vítor Bandeira trouxe de vários pontos da Amazónia em 1964-65.


5.  — A colecção de Aristóteles tem mais de 500 peças e praticamente todos os objectos têm o nome do autor, que antes era apagado — explica Pais de Brito. Gerou-se uma intimidade [entre o antropólogo e os membros da tribo]. E pensei logo em fazer uma reserva visitável.

6. Neste ponto da conversa ainda mal começámos a circular entre as vitrinas, o que é um estranho passeio para quem já esteve na Amazónia e viu muitos destes objectos em movimento nas próprias tribos. O que há de estranho é eles estarem imobilizados dentro de caixas de vidro: o nível de concentração e de imobilidade. Um museu é um lugar estranho quando conhecemos os vivos de onde os vestígios vêm. O avesso deste pensamento é que, assim, quem não pode ir à Amazónia tem algo da Amazónia. E o avesso do avesso é que talvez não seja possível ter a Amazónia fora da Amazónia.

7. A galeria abrange 40 tribos, “até aos Jívaros, a cair para o Peru”. Ao fundo da sala, libertas das vitrinas, estão as máscaras maiores, fabulosas, algumas ainda antes de perderem os seus vermelhos, tingimentos que o sol e o tempo apagam. Variam muito de tribo para tribo, por exemplo, as que Vítor Bandeira trouxe dos Tukano e dos Tikuna nos anos 60 parecem quase de pano, entrecasca de árvores batida ao ponto de parecer tecido, pintado com pigmentos minerais e vegetais.


8. Mais de 40 máscaras trazidas por Aristóteles foram feitas para um ritual induzido pelo próprio antropólogo durante a sua estadia, explica Pais de Brito.

Foto
DR

— Havia um chefe doente e ele [Aristóteles] pagou as despesas do ritual do Apapatai.

Uma dança de cura, incluindo comida para todos. Máscara que foi dançada tem um valor extra do ponto de vista do museu.

9. Quando chegamos às vitrinas com plumas, sabemos que são objectos da colecção de Vítor Bandeira.

— Agora, o Brasil já não deixa sair plumária, até já impede a venda nas lojas índias, em nome da protecção das espécies.

Difícil para os índios, para quem as plumas de arara, papagaio ou tucano são vitais, usam-se na cabeça, no pescoço, nas flautas, nas máscaras.

10. Chocalhos, cachimbos, bastões, coroas, cigarros para soprar fumo no doente, que são uma folha seca enrolada: eis o estendal de um xamã, posto em vitrina. Ou a cultura da mandioca: desenterradores, raladores, torradores, panelas de barro.

— Os Wauja são grandes oleiros.

Vi muitas panelas no Pará e no Amazonas, mas estas panelas dos Wauja do Xingu têm formas, desenhos e cores de animais, como gaviões ou onças.

— Há um investimento muito grande dos índios no acabamento das panelas. Houve uma que ficou tão perfeita que o índio disse, esta não a posso vender, é para dar. Porque dar é a forma mais importante de conseguir prestígio na troca entre aldeias. Mas as cores desaparecem quando o fogo age, o que levanta a questão da efemeridade da arte.

11. Nas prateleiras de cima está a bela cestaria, com desenhos pretos, ou pretos e vermelhos, ou só vermelhos, dependendo da tribo. A galeria inclui até as embalagens em que vieram peças, porque as próprias embalagens são objectos interessantes. Dando a volta, o visitante pode percorrer uma parede com fotografias que vários antropólogos tiraram, incluindo uma em que um índio vê o católogo da colecção de Vítor Bandeira levado por Aristóteles Barcelos Neto.

12. As plumas que Bandeira ainda coleccionou profusamente dão belos brincos, travessões, colares, uma festa de vernelhos, azuis, verdes, amarelos. Não muito longe há zarabatanas, flechas, redes de pesca, armadilhas. E por baixo, peixinhos que não são para pesca, mas se usam como zunidores, na ponta de um fio flexível, que o índio faz rodopiar.

— As mulheres não os podem ouvir, é parte do território sonoro interdito.

Interdito às mulheres, como vários outros, rituais ou bebidas.

13. Cada região tem o que tem. De Manaus vieram uns animais em látex, antas, peixes-boi, pirarucu, aproveitando a borracha das árvores. Como de Marajó, a ilha da grande cerâmica amazónica, vieram urnas funerárias, o ponto alto arqueológico da galeria. É uma questão em aberto entre Portugal e Brasil, o estatuto destas nove urnas, provavelmente do século XVI. Uma solução possível é passarem a ser depósito de longa duração no aqui, o que significaria que o Brasil assumiria a propriedade.

14. De volta ao piso térreo e às águas. A grande sala da exposição permanente também não foi poupada: a um canto, já delimitado por uma corda, como nos crimes, o chão de tacos de madeira rebentou em vários pontos, do excesso de água por baixo.

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