Um psicodrama no palco do São Carlos
Para David Alden, o angustiante drama de Kátia Kabanová é como uma pintura expressionista. Até dia 18 de Janeiro, o encenador convida o espectador a mergulhar na intimidade dos pensamentos e emoções da heroína da ópera de Janácek
Com uma carreira marcante que percorre a ópera desde o Barroco ao século XXI, o encenador americano David Alden realizou ao longo dos últimos 30 anos incursões em quase todo o tipo de repertórios, mas tem duas grandes paixões: a ópera barroca e a produção dramática de Leos Janácek (1854-1928). Já encenou quase todas as óperas do compositor checo - figura em destaque durante o mês de Janeiro em Lisboa, uma vez que a Fundação Calouste Gulbenkian também apresentou recentemente a ópera Da casa dos mortos - e assina a produção de Kátia Kabanová, que se estreia esta noite, às 20h00, no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa. No papel titular estará a soprano Ausrine Stundyte e a direcção musical é de Julia Jones.
Juntamente com Jenufa, trata-se da mais célebre das óperas de Janácek, ilustrando a angustiante paixão de uma mulher casada (Kátia Kabanová) por outro homem. Consumida pela culpa de ter concretizado esse amor na ausência do marido e pelo desgosto decorrente do desterro do seu amado (Boris) para a Sibéria, Kátia acaba por se suicidar, atirando-se ao rio.
A empatia de Janácek com esta história, baseada na peça A Tempestade, de Alexander Ostrovski, liga-se com a necessidade de materializar a sua própria paixão não concretizada por Kamila Stosslová, uma senhora casada, 38 anos mais nova do que ele, a quem dedicou a obra antes de morrer.
A produção de David Alden que poderemos ver no São Carlos foi concebida há cerca de uma década para a Ópera de Dallas e posteriormente reposta em Houston, Telavive, Londres e Varsóvia, entre outras cidades. A acção original passa-se no século XIX, mas o encenador preferiu transferi-la para uma época próxima da década de 1920, coincidente com o período em que a música foi composta (a ópera foi estreada em 1921 em Brno, na actual República Checa). "A peça de Ostrovsky está cheia de detalhes e de crítica social específica, mas Janácek transformou-a em algo completamente diferente", explicou David Alden ao P2 no final de um dos ensaios.
"Suprimiu muito dos detalhes e converteu-a num monodrama centrado na protagonista. A crítica social também está implícita, mas o estilo é completamente diferente, é comparável a uma pintura expressionista, a um quadro de Munch. Quando ouço a ópera, o que emerge é um estilo musical do século XX e não do século XIX, por isso acho que, do ponto de vista dramatúrgico, funciona bem essa transposição."
Como um filme de Bergman
No entanto, o encenador adverte que a produção tem algo de misterioso. "Não podemos ter a completa certeza da época. Algumas das pessoas mais velhas, as que têm o poder, parecem-se mais com personagens do século XIX, enquanto as mais novas olham para o futuro. Sente-se que a revolução está a chegar, mas é como uma espécie de sonho, não é real."David Alden acha que Kátia Kabanová é "uma das melhores óperas alguma vez escritas", classificando-a como uma "obra apaixonante, inteligente e perturbadora". "Podemos reconhecer na sua música um pouco de Smetana, de Richard Strauss ou de Debussy, mas o discurso é completamente pessoal, Janácek tem o seu próprio som, a sua maneira especial de fazer teatro, e nisso difere de todos os restantes."
Toda a ópera se centra na personagem principal. "É como um filme de Bergman", diz o encenador. "Ouvimos os pensamentos dessa mulher através da música, que descreve os seus sentimentos e emoções. Na minha concepção, cortei muitos detalhes visuais, deixei apenas o que é essencial, pois queria deixar a música completamente livre para descrever tudo", explica. Daí ter optado por um grande despojamento: tudo é feito com uma parede e diferentes formas de iluminação do espaço ou através do jogo das distâncias entre as pessoas.
Nesta ópera, o público vive uma experiência muito intensa, pois, durante todo o tempo, mergulha na vida emocional de Kátia Kabanová. "É um percurso que contempla beleza, dor, solidão, desespero e finalmente a loucura. É como um psicodrama", conta David Alden. O encenador recorda que Janácek estava muito interessado nas mulheres e na sociedade, por isso os homens são geralmente personagens mais fracas e negativas. "Normalmente os tenores são os heróis na ópera, mas Janácek faz deles homens fracos. Podem ter algum charme, mas normalmente não são muito importantes. Era nas mulheres e nas suas vidas que ele estava interessado. Era um defensor dos direitos humanos das mulheres e por isso se sente também muita revolta nas suas obras." Na opinião de Alden, mais do que a dimensão social, o que está em causa é a condição humana.
O encenador sublinha que a produção operática do compositor checo vive hoje um momento privilegiado, já que só nos últimos dez ou 20 anos começou a ter um lugar fixo no repertório. "Actualmente, em capitais como Londres ou Nova Iorque as óperas de Janácek estão a vender mais do que Puccini. Parece incrível, mas da minha parte acho fantástico."
Mas a vida de David Alden não passa apenas por Janácek. Nos últimos anos, o seu campo de eleição foi a ópera barroca. "É uma das grandes descobertas do nosso tempo. Temos hoje os melhores cantores para Handel ou Monteverdi, sendo mais difícil encontrar intérpretes de grande nível para Verdi e Wagner. As óperas dos séculos XVII e XVIII são peças de uma teatralidade incrível e essa tem sido uma descoberta apaixonante."
"Sou parte da revolução"
Alden já encenou oito óperas de Handel e há mais dez que gostaria de fazer, para além de muitas outras partituras mais tardias, como por exemplo Les Troyens, de Berlioz. Pretende também explorar mais o repertório do bel canto da autoria de compositores como Rossini ou Donizetti - "é necessário abordar essa obras como eventos teatrais e não apenas como peças vocais espectaculares" - e está sempre disponível para a ópera contemporânea."Nas últimas décadas, a ópera foi objecto de uma revolução e sei que sou visto como parte dela. Cortou-se finalmente com uma certa abordagem antiquada e hoje a ópera é vista como teatro. Sempre fui um lutador, mas agora, que sou mais velho, sinto que não é necessário continuar a mudar ou a inventar com a mesma veemência, até porque a revolução foi um sucesso, aconteceu definitivamente."
Os cantores continuam a ser essenciais, mas, mais do que os maestros, o mundo lírico é agora dominado pela figura do encenador. "Como em todas as revoluções, ganha-se e perde-se, mas o tempo encarrega-se de regular essas coisas", refere. "Com a influência da televisão e do cinema, é algo que tinha de acontecer. A ópera teria de mudar, senão morria, e, de facto, mudou."
Reconhece, contudo, que a situação é bastante diferente nos Estados Unidos e na Europa. "Na América, a estética da ópera é muito mais conservadora, o que tem muito a ver com questões económicas, pois a ópera é, na sua maioria, paga por privados. Isso é algo comum à estética do cinema e do teatro, que sempre foi mais conservador do que o europeu."
Mas há ainda desafios que permanecem, como o das óperas-filme. "Há os filmes do Zefirelli e outros muito bonitos, mas falta fazer filmes-ópera numa perspectiva mais moderna. Essa revolução ainda não aconteceu, em parte por questões financeiras, fica muito caro. Adoraria trabalhar nisso. A Kátia Kabanová seria uma ópera fantástica para um filme de autor."
Kátia Kabanová, de Janácek
Ausrine Stundyte, Dagmar Peckova, Magnus Baldvinsson, Arnold Bezuyen, Hans Georg Priese e outros (cantores), Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos, David Alden (encenação), Julia Jones (direcção musical) Lisboa, Teatro Nacional de São Carlos, hoje e dias 10, 12, 14 e 18, às 20h. Dia 16, às 16h.