Simon Rattle, um maestro do futuro dirige uma orquestra do século XXI
Simon Rattle não teve medo da tradição da Filarmónica de Berlim e transformou-a numa orquestra do século XXI. Esta noite, dirige na Gulbenkian, em Lisboa, a mais famosa das orquestras mundiais
"Carismático, mas algo autoritário" é a descrição recorrente quando se fala de Simon Rattle, detentor há 10 anos de um dos mais cobiçados cargos da vida musical: director artístico e maestro principal da Filarmónica de Berlim. Para os melómanos, o carisma é inquestionável, mas as tendências autoritárias poderão ser menos evidentes para quem associa Rattle ao ideal da democratização da música erudita. "O meu único interesse é partilhar a grande música com mais e mais pessoas", é uma convicção que o maestro britânico reafirma nas suas entrevistas. O programa que vai dirigir esta noite (às 21h) no Grande Auditório Gulbenkian, em Lisboa, é um bom exemplo dessa partilha de um repertório de primeiro nível que inclui peças do século XX tão ousadas como as Atmosphères de Ligeti, o bailado Jeux, de Debussy, e a Suite n.º 2 de Daphnis et Chloé, de Ravel, ao lado de páginas românticas como a Abertura da ópera Lohengrin, de Wagner, e a Sinfonia n.º 3, de Schumann.
Talvez só a tenacidade e uma personalidade forte, para além das qualidades artísticas, possam fazer frente à carga simbólica no âmbito da cultura alemã que a Filarmónica de Berlim transporta há 130 anos. O que faz de Simon Rattle um sucessor à altura de um cortejo de gigantes que inclui Celibidache, Furtwängler, Karajan e Claudio Abbado? Em 2002, os instrumentistas da formação berlinense elegeram-no em detrimento de Daniel Barenboim, de perfil mais conservador, o que indicia vontade de mudança. Para o seu primeiro concerto como titular escolheu a Sinfonia n.º 5, de Mahler, em conjunto com Asyla, do britânico Thomas Adés, peça com influências da cultura popular e da música tecno. A audácia da programação e as incursões no repertório contemporâneo nem sempre foram aceites, mas era uma imagem de marca que Rattle mantinha desde a época em que era maestro da Orquestra de Birmingham.
Nascido em 1955, em Liverpool, numa família de melómanos de classe média, estudou piano, violino e percussão e aos 10 anos já era percussionista da Merseyside Youth Orchestra. Um ano depois, após ter assistido a uma interpretação da Sinfonia n.º 2, de Mahler, descobriu o fascínio pela direcção de orquestra. Não descansou enquanto não experimentou e desde aí nunca mais largou a batuta. Com 19 anos venceu o John Player Conducting Contest e iniciou a sua carreira com a Bournemouth Symphony Orchestra. A suas interpretações eram "electrizantes" e, em 1979, aos 24 anos, foi nomeado maestro da City of Birmingham Symphony Orchestra. Foi então que se deu o milagre. Na época, esta era uma orquestra regional, mas quando Rattle deixou o cargo, em 1998, tinha atingido um estatuto mítico.
Novos públicos
Além do nível técnico e artístico atingido, o sucesso deveu-se também ao tipo de programas propostos, combinando música do século XX e compositores menos conhecidos com obras do repertório tradicional. Rattle sempre foi um maestro versátil e ao mesmo tempo fazia incursões em repertório mais antigo numa perspectiva historicamente informada como maestro convidado da Orquestra da Idade do Iluminismo. Com este percurso não surpreende que os programas da Filarmónica se estendam desde Bach e Rameau até às obras recentes de Adès, Berio, Boulez, Grisey, Gubaidulina, Lindberg e Turnage, passando por Beethoven, Haydn, Mozart e Brahms.
Durante a última década, operou mudanças na relação da Filarmónica com os novos públicos do século XXI. Foi criada uma fundação, tendo como ponto de apoio um pioneiro Programa Educativo e em 2009 foi lançado com sucesso um Auditório Digital, que transmite os concertos pela net. "A orquestra está agora mais envolvida com a vida da cidade, toca em escolas e em prisões, e os músicos estão mais abertos a novos desafios", disse numa entrevista.
Mas a Filarmónica não perdeu a sua sonoridade extraordinária, densa e pastosa. Rattle referiu ao jornal The Telegraph como este perfil sobrevive década após década. "São os jovens instrumentistas que ficam fascinados por essa sonoridade e a querem manter", explica, dizendo que se trata de "um som extraordinário e rico, que vem dos baixos e se move por ondas, mais do que por blocos horizontais sustentados."
A relação com a meio-soprano checa Magdalena Kozéna, com quem casou em 2008, trouxe publicidade adicional a Rattle, para além das controvérsias que os jornais foram alimentando. Entre os seus adversários encontra-se Axel Bruggemann, crítico do Welt am Sonntag, que num artigo intitulado Simon von Rattle acusou o maestro de submeter a orquestra a um regime excessivo de ensaios. Tensões com os próprios instrumentistas também têm existido, mas Rattle sempre as assumiu de forma natural. "Eles têm uma personalidade muito forte e é claro que são mal-humorados. Mas o reverso da medalha é que dão tanto de si. Discutem e argumentam porque querem fazer sempre melhor." Mesmo "mal-humorados" e contestatários, os músicos votaram em Abril de 2008 a favor do prolongamento do contrato de Rattle por mais 10 anos.