Seiva Trupe abre o ano com Oxigénio
Peça dos químicos Carl Djerassi e Roald Hoffmann tem estreia hoje no Teatro
do Campo Alegre,
no Porto
Não é só em dois actos que decorre a acção de Oxigénio, a peça da dupla de químicos Carl Djerassi e Roald Hoffmann que a Seiva Trupe hoje estreia no Porto: é também em dois tempos, num movimento pendular constante entre 1777 e 2001 que faz a navette entre dois mundos. A partir daqui as hipóteses são múltiplas: os dois mundos que entram em rota de colisão em Oxigénio tanto podem ser os mundos de antes e depois da revolução da química, como a fachada e os bastidores da ciência ou os universos paralelos dos homens e das mulheres. É tudo isso que está em jogo a partir desta noite, nas traseiras do grande auditório do Teatro do Campo Alegre (TCA).Há, de resto, um jogo simbólico na transposição de Oxigénio para as traseiras do auditório (e não é por acaso que, para entrar na sala, os espectadores terão de vestir uma bata): de repente, é como se o público fosse convidado a espreitar pelo buraco da fechadura episódios ultra-secretos da pequena história da ciência (e também da economia doméstica dos homens, porque no final do século XVIII ainda eram só homens, que fazem a ciência). O contexto é suficientemente ambíguo: estamos numa ficção, mas a ficção foi escrita por dois químicos mainstream com muita experiência do "meio", o pai da pílula Carl Djerassi e o Nobel da química Roald Hoffmann. Alguma coisa deve ser verdade.
Além das vidas privadas de Priestley, Scheele e Lavoisier - os três químicos que em 1777 são convocados por Gustavo III, rei da Suécia, para provarem qual deles descobriu primeiro o oxigénio -, a peça encenada por Júlio Cardoso discute sobretudo questões processuais - e portanto morais - da produção científica. É o problema da patente que se coloca entre os três cientistas quando se encontram na corte sueca - mas é também o problema da patente que o Comité de Química da Real Academia Sueca das Ciências discute, 224 anos depois, quando se reúne para atribuir o primeiro Retro-Nobel e volta a ser incapaz de escolher entre os três pioneiros da descoberta do oxigénio. Também nisso - assim como no paralelismo entre as discussões dos cientistas no salão e as discussões das mulheres dos cientistas na sauna - a peça é simétrica.
Teatro científico"Oxigénio é uma peça de teatro científico que conta, através de três mulheres, a vida dos cientistas que iniciaram a história da química. E também é uma peça que coloca problemas do quotidiano, estabelecendo um paralelismo entre o século XVIII e o século XXI. O problema é sempre o mesmo: quem descobriu primeiro? Está provado que em 1460 e 1500 vários barcos passaram pela costa americana. Mas só o Cristóvão Colombo é que ficou para a história", resume Júlio Cardoso. É esse equilíbrio precário inter pares da comunidade científica - chamar-lhe paz podre seria ir longe de mais, tendo em conta que não há verdadeira ruptura nem verdadeira maldade em Oxigénio - que Djerassi e Hoffmann parecem querer mostrar, numa peça que também pretende fazer pedagogia e que, por isso, a Seiva Trupe direcciona claramente para o público escolar, tal como o havia já feito com Copenhaga.
A peça que hoje se estreia é, aliás, uma espécie de sequela dessa experiência com o texto de Michael Frayn. "Na altura, vários académicos e cientistas se aproximaram de nós e começaram a sugerir as iniciativas mais incríveis. Li a peça e quis imediatamente fazê-la. Queremos que atinja um público o mais abrangente possível, mas é óbvio que temos uma consideração especial para com os públicos docente e discente, tanto em termos de preços como de horários", diz Júlio Cardoso. É, aliás, a Universidade do Porto que assegura a publicação do texto da peça, através da sua recém-relançada editora.
Tal como sugerem os actores, as 13 personagens de Oxigénio foram distribuídas a apenas sete actores (António Reis, Fernando Landeira, Isabel Queirós, Luís Mestre, Mariana Assunção e Marta Gorgulho), que circulam constantemente entre os séculos XVIII e XXI. Uma mecânica complexa que Júlio Cardoso resolveu numa encenação bipolar - o oxigénio propriamente dito (O2, para os iniciados) também é uma estrutura com essas características.