O mar da Irlanda e o Irão por trás do véu em Vila do Conde
La Peau Trouée e Prostitution bag Sloret, dois documentários no pelotão da frente da competição internacional
Mina e Fariba queimam heroína em papel de prata num pátio sem saída do Irão real (depois prostituem-se com os filhos ao colo) e a muitas, muitas milhas dali, num Ocidente que julgávamos menos carniceiro, cinco homens fazem sangue a amontoar tubarões num porão do mar da Irlanda. Até anteontem, os universos paralelos de Prostitution bag Sloret, da iraniana Nahid Persson (é uma iraniana à distância: tem nacionalidade sueca, mas regressa ao Irão constantemente, quase por militância), e La Peau Trouée, primeira obra do francês Julien Samani, eram apenas isso: universos paralelos, objectos periféricos numa competição a duas velocidades, escapista (via ficção, animação ou formato experimental) ou panfletária (via género anti-Bush). Anteontem, o 13º Curtas de Vila do Conde exibiu-os em horário nobre e isso mudou tudo: agora o documentário vai à frente no festival, fétiches à parte (Empire e, sobretudo Counter são casos quase passionais).
Há total coincidência de formatos (documentário, média metragem a atirar para os 60 minutos) e total divergência de programas em Prostitution bag Sloret e La Peau Trouée: Nahid Persson usa o documentário como arma, Julien Samani usa o documentário como alma, mas ambos manifestam uma solidariedade tão radical com os seus objectos que os torna exemplares como gestos de aproximação ao real, seja lá o que isso for. Nahid Persson aceita a contaminação da linguagem da reportagem televisiva (o seu formato é um formato convencional: voz off, entrevistas, personagens), Julien Samani recusa-a liminarmente (e nisso é mais admirável: nunca se aproxima suficientemente dos cinco pescadores de tubarões para compor retratos, mas há um efeito de grupo extraordinariamente poderoso, quase primitivo, em La Peau Trouée).
É óbvio que, pelo carácter figurativo do dispositivo e pela natureza do "seu" real - a impraticável condição feminina no Irão dos ayatollahs, plano apertado a essas duas mulheres que se prostituem com ou sem o aval do Corão -, Prostitution bag Sloret comunicou muito mais instantaneamente com o público (é um dos cinco favoritos no placard). La Peau Trouée passou muito mais tarde, ainda por cima na tenda, e não é só isso: é um documentário quase exclusivamente não verbal, colado ao sangue e ao suor de cinco pescadores no alto mar, abafado pelo barulho opressivo do motor e muito pouco condescendente com a etiqueta user-friendly do formato televisivo. Bem mais cinema do que o documentário de Nahid Persson, portanto - e um cinema fosforescente, que eleva à potência máxima as cores improváveis da vida a bordo nas horas fora de horas em que não há luz e em que somos esse sanguinário animal predador que julgávamos extinto.
A outro nível, Counter, de Volker Schreiner, foi um dos objectos mais singulares exibido anteontem. Recorrendo ao método habitual da equipa Müller-Girardet, Schreiner construiu uma engenhosa contagem decrescente reciclando imagens avulsas de números recolhidas em filmes (muitos Hitchcoks, de Ladrão de Casaca a Psycho e Pavor nos Bastidores, mas também o Brazil de Terry Gillian, o Thelma & Louise de Riddley Scott e a Charada de Stanley Donen, entre muitas dezenas de outras fontes). A subvertida pax americana de Empire, do francês Edouard Salier, a meticulosa linguagem gráfica de Come Home Billy Bird, videoclip dos Divine Comedy, e o inferno subliminar de La Peur, Petit Chasseur, ficção de Laurent Achard, foram os outros achados da noite.