Não sabemos se dentro de 50 anos Portugal ainda existe

Saramago acha que As Intermitências da Morte é a sua melhor obra depois do Nobel. Bárbara Guimarães, a mulher e tradutora, Pilar, e a actriz brasileira Torloni estarão entre os leitores, ao vivo, de trechos do livro, no lançamento simultâneo de oito edições, logo à tarde, em Lisboa. A anteceder uma entrevista amanhã, no Mil Folhas, o escritor fala ao PÚBLICO sobre a sua escrita, antes e depois de 1998, das multidões que o aclamam mundo fora, e da relação com Portugal, país que considera viver neste momento em "estado de cinzas".
Por Adelino Gomes (texto) e Daniel Rocha (fotografias)

A palavra e a música marcam o lançamento de As Intermitências da Morte, de José Saramago, ao fim da tarde de hoje, em Lisboa. Por entre frases do autor e música de Bach, essencial na trama do romance, editores, tradutores e amigos celebrarão o lançamento simultâneo das edições portuguesa, espanhola, mexicana, argentina, colombiana, catalã, brasileira e italiana do último livro do Prémio Nobel da Literatura de 1998, numa cerimónia programada para as 18h30, no Teatro de S. Carlos. José Saramago será o orador único da sessão, em que, se cumprir a regra que ele mesmo enuncia nesta entrevista ao PÚBLICO, reservará "10 minutos para a obra e mais 50, ou uma hora para falar de outras coisas". Bárbara Guimarães, a mulher e tradutora, Pilar del Rio - apresentadoras da sessão, em português e espanhol -, e a actriz brasileira Christiane Torloni figuram entre os leitores, ao vivo, de trechos do livro ("Com o seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a morte assiste ao concerto", lerá Bárbara, iniciando uma sequência que continua noutras línguas, interpretada por cada um dos editores, e termina no português brasileiro de Torloni: "Quando o violoncelista se virou para o camarote, ela, a mulher, já não estava. Assim é a vida, murmurou.").
A violoncelista Irene Lima tocará o prelúdio da suite n.º 6 em ré maior BWV 1012, de Johann Sebastian Bach. O trecho musical escolhido desempenha um papel decisivo na obra, que se desenvolve a partir da ideia de que um dia a população de um determinado país com dez milhões de habitantes e um regime de monarquia constitucional se apercebe de que deixou de morrer.
A trama do romance desemboca numa surpreendente relação entre a morte - que assume a figura de uma mulher atraente - e o violoncelista de uma orquestra, cujo falecimento tem vindo a ser sucessivamente adiado porque a carta com a data da sua morte é, misteriosa e sistematicamente, devolvida ao remetente: a própria morte.
A 1.ª edição do livro, já à venda, tem uma tiragem de cem mil exemplares (número semelhante ao do seu romance anterior, Ensaio sobre a Lucidez, que vai em segunda edição, de vinte mil exemplares).
Nesta primeira parte da entrevista (a segunda preencherá parte da edição de amanhã do suplemento Mil Folhas), Saramago rejeita a ideia de estar a ser vítima do "mal do Nobel"; defende que tem um público muito próprio, em todo o mundo, ainda que admita que também ele não consegue ser completamente profeta na sua terra; e mostra-se preocupado com a capacidade de sobrevivência de Portugal enquanto país independente. "Num tempo de desconcerto, de mudança de valores rapidíssima, perdemos o pé, não sabemos para onde vamos", lamenta, citando a "apagada e vil tristeza" camoniana.
PÚBLICO - Na sua lista pessoal em que lugar coloca este seu último livro?
JOSÉ SARAMAGO - Não sei. Acho simplesmente que é um bom livro...
Tem-lhe sido mais fácil ou mais difícil escrever livros depois do Nobel? Isto é: sente o peso do prémio ou sente-se agora livre para fazer o que lhe apetece?
Continuo a sentir o medo da exigência. Os livros que escrevi depois penso que reflectem que o autor está tão preocupado com a qualidade daquilo agora como estaria antes. Não sinto o peso do Nobel. Escrevo como se não o tivesse tido. Escrevo como se não tivesse que provar que o mereci. Escrevo como escreveria provavelmente se o não tivesse tido.
Os livros vendem agora pelo que valem ou, digamos, por um preço que o autor tem no mercado livreiro depois do Nobel?
Para alguns leitores, sim, o Nobel terá alguma influência. Mas tenho muitos leitores que têm a preocupação de me dizer: "Olhe que eu já o leio desde antes do Nobel!..."
E não sente a chamada "maldição do Nobel"? O Homem Duplicado, por exemplo, não foi o êxito que esperaria. Depois do Nobel, acha que escreveu alguma obra-prima ao nível dos grandes livros que fizeram o seu nome?
Não me cabe a mim classificar os meus livros de obras-primas. Mas vamos lá ver: O Homem Duplicado - diga-se, com mais ou menos boa recepção do público - é um romance importante. Tanto do ponto de vista da expressão como do que propõe. A Caverna é talvez um livro demasiado longo, podia ter tido menos 50 páginas, ficava mais condensado. Mas põe, embora talvez não da maneira mais eficaz, uma questão que é de hoje (porque eu escrevo fábulas mas estou a falar do dia de hoje): a obsessão da segurança e do que é provável que aconteça no futuro - os centros comerciais deixarem de ser um mero conjunto de estabelecimentos para vender coisas e que se convertam em microcosmos onde se pode viver. É provável que isso venha a acontecer. Considero que o Ensaio sobre a Lucidez é uma obra importantíssima ...
... pelo menos polémica foi...
.... e que talvez As Intermitências da Morte sejam o melhor desses quatro romances.
É verdade que alguns tradutores estão a ter dificuldades em traduzir a palavra "intermitências"?
Na Alemanha, por exemplo, dizem eles que não há maneira de dizer "as intermitências da morte". Se eu lhes digo, por exemplo, que os automóveis têm uma luz intermitente, eles respondem-me que "luz intermitente" podem traduzir, não podem é dizer em alemão "as intermitências da morte". Ao que eu respondo: "Oh que língua maravilhosa temos nós, que é capaz de dizer coisas que as outras línguas não são capazes!..."

Multidões lá fora, frieza oficial aqui

Nos intervalos dos livros [desde o Ensaio sobre a Lucidez, há um ano e meio, publicou Don Giovanni ou o Dissoluto e agora este], anda pelo mundo. Num corrupio. Antes tinha estado no Canadá, onde me fizeram doutor honoris causa pela Universidade de Alberta...
Pela trigésima vez, não?...
São 33 ou 34 doutoramentos. Fomos a Cuba, Costa Rica, El Salvador, Estocolmo, para outro doutoramento...
O que o faz mover? Evidentemente que são os convites. Mas o que o leva a aceitá-los? O gosto da viagem, o prazer dos aplausos, ou uma mensagem que tem para transmitir?
Só aceito alguns convites. Se os aceitasse todos não escrevia nem uma palavra. Aplausos? Toda a gente gosta de carinhos e de mimos. Em Belo Horizonte, onde estive agora a apresentar este livro, havia 1700 pessoas. O que significava o auditório completamente cheio. Em S. Paulo eram mil, sem contar as pessoas que ficaram fora. Viajo porque há congressos em que me interessa estar; para apresentar livros (de dois em dois anos); e por muitas razões que não têm nada a ver com literatura.
Como por exemplo?
Empenhamentos sociais; políticos, nalgum caso. Quando apresento um livro, digo sempre: contem com 10 minutos para o livro e com mais 50, ou uma hora para falar de outras coisas.
Falou nesses milhares de pessoas que o procuram para o ouvir, por exemplo na América Latina. Também aqui ao lado em Espanha. Mas em Portugal não é assim. Por não ser profeta na própria terra?
Aqui, se eu apresento um livro em qualquer parte, a sala estará cheia.
Não das multidões que acorrem nos outros países.
Não são realmente multidões. Talvez porque não há esse hábito.
Não se sente menos amado na sua terra?
Não, que ideia! As Intermitências da Morte saem com uma tiragem de cem mil exemplares. E haverá uma segunda e uma terceira edições, estou seguro disso. Não me sinto menos amado. As pessoas param-me na rua. O que há é um sector oficial que realmente não tem muita simpatia por mim. E tem-no manifestado, ainda que agora já não tanto.
Quais as diferenças que encontra nesses públicos que o vão ouvir? Ou há um público global?
Creio que há um público meu.
O público "Saramago"?
O Homem Duplicado foi apresentado em Buenos Aires, no Teatro Colón, que tem 4100 lugares. Estava cheio até ao galinheiro. E cá fora dizia-se que mil pessoas não tinham podido entrar. Isto surpreende-me, porque, como às vezes digo, eu só falo, não danço. O que me impressiona mais é a juventude - a parte da juventude que está nesse meu público.
O que diz a essas pessoas, na Argentina, é o mesmo que diz aqui em Portugal ou nos países nórdicos?
Na maior parte.
E a recepção é a mesma?
É.
O jornal El Pais traz frequentes notícias sobre intervenções suas perante plateias de intelectuais, de académicos, de políticos, em que se regista um grande assentimento em relação ao que diz. Em Portugal isso não acontece.
Não tem o mesmo impacto, efectivamente. Ninguém é profeta na sua terra, mas também eu não quero ser isso. Provavelmente terá a ver com o público. E também com o acolhimento dos meios de comunicação.
Aí estamos na pescadinha de rabo na boca; ou a procurar ver se foi o ovo se a galinha quem nasceu primeiro, sem a gente saber quem é o ovo e quem é a galinha...
Mas aquilo que eu vejo em alguns países é que actos destes são notícia. E aqui não é.
Tendo em conta esses públicos que o vão ouvir, qual é o estado do mundo? O que é preocupa as pessoas, hoje?
As preocupações que eu expresso, julgo que no fundo são as preocupações que as pessoas têm. Vão lá ouvir em voz alta as suas próprias preocupações, talvez. Como umas tantas coisas que eu digo parecem razoáveis, elas deveriam levar a um determinado tipo de acção. Mas também tenho que entender que ninguém está disposto, depois de eu ter dito umas tantas coisas....
 ... a partir de ali para a acção...
Isso aconteceu alguma vez na história, mas não é o caso.

Portugal em tom menor As pessoas dizem que Portugal nunca esteve tão mal como hoje. É um momento de descrença generalizada. É esse também o seu sentimento?
[Longa pausa] O Guerra Junqueiro escreveu aquele livro - Finis Patriae. A sensação que eu tenho é a de um processo de decadência com alguns sobressaltos. A proclamação da República foi um deles; o 25 de Abril foi outro. Ele parece que mostra a nossa incapacidade de manter alta a nossa tenção de viver. Fogos de palha, súbitas erupções de entusiasmo (aquilo a que chamamos entusiasmo) popular - tudo isto se converte, com mais ou menos rapidez, em cinzas. E aqui estamos num tempo de cinzas. Não vejo que haja um debate de ideias. Digamos que a política é discutida em termos de mera cozinha gastronómica. Faltam figuras, faltam pessoas. Em algumas épocas, podíamos citar nomes de grandes figuras nacionais. Hoje é muito difícil. Também não quero cair na tentação de necessidade dos líderes, dos homens exemplares. Não é isso. Quando se publicou O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984], eu disse que era uma tentativa para compreender a doença portuguesa. Citando uma vez mais o épico, não são gratuitas aquelas palavras da "apagada e civil tristeza". Continua a haver algo disso na nossa mentalidade. Num tempo de desconcerto, de mudança de valores rapidíssima, perdemos o pé, não sabemos para onde vamos. Não temos a certeza se daqui por 50 anos este país existe.
E nisso somos diferentes dos espanhóis, que vivem em grande euforia, até económica.
Certo. É um país que, com todos os conflitos e que são sérios, como a questão das autonomias e das aspirações mais ou menos independentistas, está vivo, mexe-se. Aqui não. É tudo em tom menor. Não sei o que aconteceria se tivéssemos problemas semelhantes aos de lá. Não sei se teríamos arcaboiço para confrontarmos seriamente questões como essas.

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