Luanda quer ser um centro da arte contemporânea africana
A Trienal de Luanda, aberta há quatro meses, provocou na sociedade luandense uma reflexão generalizada sobre a cultura, a política e a vida do país. Acaba a 31 de Março e quis mostrar porque é que Luanda se poderá tornar no grande pólo da arte contemporânea africana
Fernando Alvim e Simon Njami serão os responsáveis pelo pavilhão africano da Bienal de Veneza, de 10 de Junho a 21 de Novembro. O evento incorporará a colecção da Fundação Sindika Dokolo.As tentativas que os dois artistas têm vindo a fazer nos últimos anos para "deslocar o epicentro da arte contemporânea africana para fora da Europa e dos EUA" é, diz Alvim, o principal motivo desta escolha. "É a primeira vez que africanos são nomeados para o pavilhão africano da Bienal de Veneza", realça.
A decisão do curador da Bienal de Veneza, conta Alvim, "foi tomada depois de conhecer o projecto da Trienal de Luanda". Para o pintor, este facto é o reconhecimento da "importância crescente que Luanda está a ter no meio mundial da arte contemporânea". Um sinal de que o caminho a percorrer para fazer de "Luanda a grande plataforma da arte e da cultura contemporânea africana em África" não é "tão curto como isso". Utopia? Talvez não. "A colecção Sindika Dokolo está em Luanda. Todos os que quiserem ver a mais importante colecção de arte africana contemporânea têm que passar por cá. Não há volta a dar. Com a trienal, a cidade entrou já no roteiro mundial da arte contemporânea."
A dar consistência à projecção de Luanda está também a futura construção de dois centros de arte: um público, que já estará a avançar, e um privado, que, ao que tudo indica, está prestes a sair do papel. Este último, financiado por Alvim, por Sindika Dokolo e por bancos e empresas, será, acima de tudo, um "núcleo de experimentação de artes e cultura". Assentará "na multiplicidade de projectos, no curto espaço de tempo entre a ideia e a concepção e na interacção entre as várias disciplinas artísticas", explica o artista. Uma linha conceptual que está já a ser seguida na TL, onde, para além das artes visuais, decorrem também mostras de cinema documental e de ficção e "performances" de teatro e dança. Esta estrutura, continua o artista plástico, quebrará a "frieza dos museus tradicionais", aproximando o espaço às "vivências e forma de estar descontraída e expansiva dos angolanos". Pedro Cardoso
a Um forte traço filosófico explica-a. A Trienal de Luanda é um laboratório cultural que se propõe perceber, discutir e mostrar novas percepções e sistemas estéticos criados ao longo da turbulenta história contemporânea angolana.
É um projecto também político, portanto, que pretende devolver a uma sociedade acabada de imergir de uma guerra civil de 30 anos um pouco das referências e auto-estima perdidas.
A quadratura que desenha a primeira Trienal de Luanda, que acaba esta semana, é, por isso, lógica: arte, cultura, história e política contemporâneas africanas e, mais especificamente, angolanas.
Este movimento de catarse tem a assinatura do artista plástico angolano Fernando Alvim, proprietário intelectual do projecto. Ao longo dos últimos meses, Luanda tem assistido a uma sucessão de exposições em que a pintura, fotografia e vídeo ganharam uma projecção rara em Angola.
O ciclo Dipanda Forever - Cosmos África Forever - Cosmos Mundo Forever criou um diálogo entre um núcleo de artistas angolanos; entre estes e os demais artistas africanos, e de todos eles com artistas de todo o mundo. Um combate à "guetização e à catalogação por prateleiras", como diz Fernando Alvim.
Nomes ainda desconhecidos como Sérgio Pinto Afonso, Mona e Lino Damião estão a ganhar projecção. Os pintores Yonamine e Ihosvanny e o fotógrafo Kiluanji Kia Henda receberam inclusivamente, através de um contrato com a SOSO LAX (produtora da Trienal de Luanda), apoios que lhes permitem exercer a sua arte.
Residências artísticas no interior do país sucedem-se, numa busca de novas estéticas e de um hipotético fio condutor da cultura visual angolana. No rodopio da Trienal de Luanda, os três artistas expuseram já no Instituto Valenciano de Arte Moderna e na Arco de Madrid, no ano passado. Em breve, os três iniciarão um trabalho conjunto com o catalão Miquel Barceló, que esteve recentemente em Luanda. Ihosva e Yona participarão também na próxima Bienal de Veneza.
Lado a lado com a nova geração de artistas, a maioria saída do grupo "Nacionalistas", que agitou Luanda nos anos 90, expõem nas paredes brancas dos espaços da Trienal de Luanda Etona, António Ole ou Gita Cerveira, entre outros nomes sonantes das artes angolanas.
Esta união entre emergentes e consagrados insere-se numa perspectiva "inclusiva e aberta que a Trienal de Luanda deseja dar da arte angolana, numa tentativa de fazer como que um levantamento do "estado das coisas", sem juízos de valor", diz Fernando Alvim.
E o mercado, existe?
Co-patrocinadora da Trienal de Luanda, a Fundação Sindika Dokolo assume uma preponderância na alimentação das exposições. Sediada em Luanda, a instituição tem uma importante colecção de arte africana contemporânea com 720 obras e criada a partir do
acervo do congolês Sindika Dokolo, que vive em Luanda (inclui sobretudo pintura e fotografia dos anos 70 até hoje). Ricardo Viegas Abreu, Costa Reis, Paulo Pinto de Andrade são outros dos coleccionadores que sustentam a Trienal de Luanda.
No conjunto, a trienal custou - tudo dinheiro privado - três milhões de dólares.
E quando se fala em vender as obras, surgem na primeira fila estes mesmos coleccionadores angolanos. "Estamos preocupados com as dinâmicas da arte em Angola. O mundo internacional não acrescenta nada ao mundo africano, em termos de instrumentos para produzir cultura. O nosso objectivo, mais do que vender para o estrangeiro, é introduzir no país o gosto por coleccionar", diz Alvim.
E o mercado, existe? Sim, diz o pintor. "Basta pensar da seguinte maneira: em Luanda, estão a nascer dez prédios de 20 andares. Como tal, vamos precisar de quatro mil obras de arte para preencher as paredes. Do ponto de vista económico, é importante, porque oportunidades como esta poderão dar segurança financeira aos artistas, que assim poderão apostar na evolução do seu próprio trabalho. Ao mesmo tempo, além dos grandes coleccionadores, temos outros mais pequenos, concentrados na capital, que compram uma obra por mês, o que, por si, já é muito bom."
Luanda em intervenção
"A trienal é um projecto de Luanda, não em Luanda", diz Fernando Alvim. Esta ideia estruturante tentou criar, na sua execução, um sentido e uma direcção a todo o projecto, rumo à cidade, à sua alma e ao seu espaço físico. O diálogo criado com a sociedade, através de uma intensa campanha mediática radiofónica e televisiva, e a recuperação de sete espaços no centro da cidade, que servem de casa aos eventos da trienal, exemplificam esta dinâmica. Três permanecerão após o encerramento do evento.
Esta promoção de um encontro entre a cultura, o indivíduo e o meio inclui também os 300 "outdoors" que, por toda a Luanda, mostram traços gerais da vida e obra de pintores, escritores e músicos angolanos.
100 mil visitantes
Em Novembro de 2005, arrancou também o Projecto Educação. Até hoje, passaram já pelas salas da Trienal de Luanda 30 mil alunos entre os cinco e os 25 anos. Três desenhos feitos por crianças de cinco anos, aquando da visita às exposições, estão em outdoors no centro da cidade.
Para abranger a sociedade da capital, todos os eventos foram gratuitos. A resposta dos luandenses foi "muito satisfatória": "As sociedades africanas são curiosas. Quando se faz um projecto, a rejeição não vem da massa, mas da intelectualidade que o vê como uma ameaça. A maior parte da população sente afinidades com o que vê, identifica-se com propostas estéticas", diz Alvim.
Pela trienal de Luanda passaram quase 100 mil visitantes. Abertas ao público são também as conferências que têm trazido a Luanda especialistas mundiais em arte africana, como Laurie Farrell, curadora do Museum of African Art New York, Ruth Noack, curadora da Documenta de Kassel, e o camaronês Simon Njami.