Los Angeles, desaparecida em L. A.
O 4.º Festival Internacional de Cinema Documental de Lisboa está a mostrar, na Culturgest, dezenas de filmes
em oito secções. Acaba a 29 de Outubro.
Hoje, destaque para a Los Angeles de Los Angeles Plays Itself
A partir de filmes e fotos inéditas suas, o cineasta Edgar Pêra vai fazer, diariamente, uma banda gráfica durante os festivais internacionais DocLisboa e BD da Amadora. A última é publicada no dia 5.
Como Los Angeles, cidade de pessoas, desapareceu, engolida por L. A., cidade do cinema
Vasco Câmara
Woody Allen, realizador, actor, em Annie Hall: "Não quero viver numa cidade onde a única vantagem cultural é virar num cruzamento com sinal vermelho." Roman Polanski, cineasta: "Não há cidade mais bonita. Desde que seja vista à noite e à distância" (Polanski viveu lá em tempos, e escolheu viver à distância, ficou-se pelas colinas). Eles (e os filmes) todos chamam à cidade: "L. A."
Mas um cineasta, documentarista, professor de cinema, insiste: "Esta é a cidade, Los Angeles", não L.A. Logo a seguir, com estudada resignação, a explicação para o mal-entendido: "Fazem-se filmes aqui..."
É assim, com voz-off fleumática, que começa Los Angeles Plays Itself (2003). Chamemos-lhe documentário, chamemos-lhe "valentine" por uma cidade desaparecida: Thom Andersen, 63 anos, vive em Los Angeles e reclama que a sua cidade tem sido tão mitificada quanto incompreendida ("uma das cidades mais fotografadas, mas das menos fotogénicas"): é sempre a cidade que se ama e odeia, demasiado grande para caber no ecrã, uma série de cidades ligadas por auto-estradas, sem gente nas ruas, só com carros... (mas o realizador propõe: "Quem conhece a cidade? As pessoas que andam a pé"). Andersen (três documentários em 28 anos) reclama que a sua cidade é dominada por gigantescas letras - HOLLYWOOD - e que isso é o emblema da ditadura da ficção e das gentes que nela trabalham. "Quando, afinal, só um em quatro habitantes de Los Angeles estão ligados ao entertainment."
Com a ajuda de clips de filmes, DVD e videocassetes lá de casa, dos filmes da Hollywood áurea ao cinema experimental, Andersen toma posse do que é seu - como se lho tivessem tirado. Faz a crónica de um desaparecimento: como Los Angeles se transformou em L.A., "cidade onde apenas alguns edifícios têm cem anos, onde os traços históricos foram apagados e onde um local se torna património histórico se ali se rodar um filme".
Ensaio estético, sociológico e político, incita o espectador a construir o seu próprio olhar, desviando-se da ficção para chegar ao real (que pode estar lá atrás no plano, ou escondido como subconsciente na ficção, mas é sempre possível de ser revelado). Este filme foi um dos escolhidos pelo cineasta Pedro Costa, programador da secção Ficções do Real, sobre as relações entre documentário e ficção.
A ambição é grande. Mais de 2h40m de filme - que isso não intimide, a solenidade desfaze-se de forma lúdica. É um percurso das trevas à iluminação. Alguns passos: Los Angeles, nos filmes, sempre "cidade sem nome"; o Bradbury Building, bizarra visão de escadas de mármore cor-de-rosa criada em 1893, a Ennis Brown House de Lloyd Wright e outros exemplares da arquitectura modernista sempre a fazer de cave de gangsters, o que é - é o ponto de Andersen - a trivialização do património progressista da cidade.
E onde está, pergunta Andersen, a comunidade mista, social e etnicamente, que foi Bunker Hill? Ali, zona residencial de rendas baratas, "ser real era "ok"". Foi deitada abaixo e no cinema ficaram poucos vestígios. Por isso, Andersen elogia Pagos a Dobrar (1944), de Wilder, Mildred Pierce (1945), de Michael Curtiz, e Fúria de Viver, de Ray (1955): porque "what we see is what was really there".
Pelo contrário, atira-se a Chinatown, de Polanski (1974) ou a Point Blank (1967), de Boorman, porque perpetuam o mito de uma cidade insidiosa com um pecado original (a corrupção), mal mítico contra o qual é escusado lutar.
E onde estão as pessoas, que não as pessoas do cinema porque essas vieram de fora? Nos autocarros, diz Andersen. (Mas generalizou-se que andar de autocarro é perigoso e precário, por isso os transportes públicos tornaram-se gueto proletário e, sim, círculo vicioso, os transportes públicos tornaram-se perigosos e precários. )
Mas há filmes com pessoas. Imagens a preto e branco, epifania no fim de percurso. Descobriu-se, enfim, o género humano. Produções independentes das chamadas comunidades étnicas, como The Exiles (1961), de Kent MacKenzie, Killer of Sheep (1977), de Charles Burnett, Bush Mama (1979), de Haile Gerima. Retratos da vida urbana em Los Angeles tal como nunca a vimos. Andersen diz: "Em tempos, existiu uma cidade por aqui."
Los Angeles Plays Itself,de Thom Andersen
LISBOA Culturgest, Pequeno Auditório, 21h