Günter Grass "Seria hipócrita pôr todas as culpas no rapaz que fui aos 15 anos"
O escritor alemão, que admitiu ter pertencido às Waffen-SS, apresentou a sua autobiografia Descascando a Cebola, que sairá em português em 2007
Havia um rapaz no passado do escritor alemão Günter Grass. Um rapaz de 15 anos, que se apresentou voluntariamente ao serviço militar na Alemanha nazi. Um rapaz de 17 anos que vestiu o uniforme negro das Waffen-SS. Um rapaz ansioso por sair do ambiente sufocante da sua casa. Um rapaz que viu familiares e amigos desaparecerem e não se interrogou sobre o que lhes podia ter acontecido. "Tinha de me aproximar desse jovem com muita cautela", explicou Grass numa conversa com jornalistas, ontem, no Goethe-Institut, em Lisboa, sobre a sua autobiografia Descascando a Cebola. O livro é um reencontro de Grass com um passado difícil, um esforço para recuar à sua infância e juventude e assumir coisas que nunca tinha assumido publicamente. O livro, editado em Agosto na Alemanha - e cuja tradução portuguesa deverá sair no início de 2007 -, nasceu envolto na polémica. Dias antes do lançamento, o escritor largou a "bomba" numa entrevista ao Frankfurter Allgemeine Zeitung, ao revelar que aos 17 anos tinha integrado, durante alguns meses, a unidade de elite do regime nazi.
"Toda a polémica na Alemanha foi feita a partir de uma frase do jornal", lamentou Grass. "Construíram a entrevista como se eu só quisesse falar disso, quando esse episódio ocupa duas páginas do livro". Seguiram-se semanas de uma "enorme pressão". Os jornais não falavam de outra coisa, o "caso Günter Grass" ocupava todas as conversas, vários intelectuais alemães manifestavam a sua indignação, alguns acusaram-no de "oportunismo" e "hipocrisia". Grass começava a cair do pedestal onde muitos o tinham colocado com a etiqueta de "referência moral de uma nação". O homem que sempre obrigara os alemães a enfrentar o passado tinha sido das SS - e foram muitos os que acharam que ele esperara demasiado tempo para o confessar.
"O que me ajudou foram as centenas de cartas que recebi de pessoas que falavam do livro, e não daquela frase", disse o escritor, que, depois da conferência de imprensa inaugurou uma exposição de desenhos e esculturas seus e fez uma leitura pública de excertos do seu livro.
Para ele, Descascando a Cebola é muito mais que uma confissão de um momento muito concreto da sua juventude. "Tinha de pôr em causa o rapaz que fui", explica, acendendo o cachimbo. "Mas, ao mesmo tempo, não podia chegar a ele como o homem que sou hoje, com a minha idade, a minha experiência, sabendo o que sei". Nessa procura, "houve momentos em que o jovem desaparecia", mas com o tempo, Grass começou a perceber porque fez certas coisas e porque não fez outras.
Disse já, em entrevistas anteriores, que o silêncio que manteve sobre o desaparecimento de pessoas que conhecia, e o facto de não se ter interrogado sobre o que se passava, incomoda-o mais do que o tempo que passou nas SS. "É possível que o medo de uma resposta que pusesse tudo de pernas para o ar me tivesse emudecido?", interroga-se no livro. Concluiu, no entanto, que "não podia pôr todas as culpas nesse rapaz de 15 anos". "Fazê-lo era hipócrita, com toda a experiência que eu já tinha."
"Não fiz perguntas"É um retrato duro, sem concessões, o que faz de si mesmo no livro: "Por muito aplicado que seja a remexer na folhagem das minhas memórias, nada se aproveita que me seja propício. Pelos vistos não houve dúvidas que turvassem os meus anos de infância." E noutra passagem: "[...] não fiz perguntas, mais uma vez não fiz perguntas, nem mesmo quando o Wolfgang Heinrichs sumiu [...]."
Chegar até essa infância foi um processo longo e "doloroso". Fê-lo aos 78 anos, porque "é preciso ter alguma idade para escrever um livro assim". "Com a idade, a memória os acontecimentos mais recentes começa a desaparecer e as da juventude ficam mais claras", diz. E é porque essa memória tem camadas, como as cebolas, que chamou ao livro Descascando a Cebola. "Debaixo de cada pele há outra pele de memória."
Chorou enquanto o fazia? O escritor levanta as sobrancelhas e sorri - não tem o mesmo ar zangado e carrancudo com que se desenhou a si próprio numa ilustração em frente a duas cebolas meias descascadas. Responde, divertido: "Sim, chorei. Mas chora-se mais a cortar uma cebola do que a descascá-la."
Günter Grass não se reencontrou apenas com o rapaz que um dia se alistou voluntariamente e algum tempo depois chegou a um campo de treino das Waffen-SS (o escritor disse sempre que não esteve envolvido em combates nem em crimes de guerra); reencontrou-se também com um miúdo que "gostava muito de inventar histórias para contar à mãe, e a mãe gostava muito de as ouvir".
O livro começa em 1939, o ano em que a II Guerra Mundial rebenta. "Foi num espaço reduzido que a minha infância acabou, quando, no lugar onde cresci, em diversos pontos ao mesmo tempo, a guerra rebentou", escreve Grass.
Descascando a Cebola é também a história de como esse miúdo se tornou num escritor, uma figura internacionalmente reconhecida e um Nobel da Literatura, em 1999 (mas isso não está lá porque a autobiografia vai só de 1939 a 59). O que Grass hoje, descascada a cebola, mais lamenta é que a mãe, "devorada por um cancro" em 1954, não tenha vivido o suficiente para ver aquilo que ela sempre acreditara - que o filho que lhe contava histórias inventadas seria um dia um escritor.